Estava me devendo a leitura de um romance que se dizia ser muito bom – o oeste brasileiro sendo visto por um sujeito cosmopolita. O livro é “sobre família, desterro, violência e dinheiro, no coração de um Brasil indiferente e brutal, cujo vazio das planícies é também o vazio histórico e de narrativas”, conforme a quarta capa.
Esta apresentação sugere um esforço narrativo que interessa: o mundo do oeste brasileiro, de colonização recentíssima, coisa de 2 ou 3 gerações, em grande parte gente saída da pequena propriedade imigrante aqui do Rio Grande do Sul, que subiu pelo oeste catarinense, paranaense, paulista, e se foi Mato Grosso do Sul afora, para Goiás, Mato Grosso e Tocantins, derivando mais para o oeste até o Acre, e mais para o leste, no sertão nordestino.
O que sabemos desse processo? Agora temos um resultado prático dele: ao lado da imensa riqueza do agro (soja e gado, mais que tudo), a destruição de grande parte do Cerrado e da Amazônia. Emergência climática é o nome do produto, que cada vez mais vai exigir nossa atenção, se quisermos seguir vivos.
Pois em Apátridas (Companhia das Letras, 2020), Alejandro Chacoff arranca de modo excelente sua história: temos um narrador que é adolescente quando vai morar com o avô, dono de cartório em Cuiabá. Criado nos EUA, filho de mãe brasileira e pai chileno, ele passava férias por ali e agora vai viver a rotina do oeste, lugar ermo, violento, patriarcal, rico e arcaico ao mesmo tempo. Nem sombra de beleza, nem mesmo daquele simpático exotismo de antes.
O romance se arma de modo ótimo, mas se esfarela lá pela metade, terminando de modo anódino. O ângulo da narração é ligeiramente cínico, de vez em quando abúlico, mas de todo modo vai mostrando a combinação de riqueza (a do agro, com seus truculentos agroboys e seu sertanejo de “sofrência”, assim como a do avô, com seu brasileiríssimo cartório, fonte de grana ao estilo Antigo Regime) com o “vazio”: o protagonista estuda em sofisticada escola construtivista, que passa filme de vanguarda para os alunos, os quais são herdeiros da brutalidade destrutiva do local e nada querem saber da vida real ao redor. Abaixo de sua riqueza, quantos milhares de mortos e estropiados, das etnias originárias? Quantos pedintes, sem-terra e sem-teto foram gerados nesse tempo?
O livro aponta para esse contraste e nos permite enxergar algo da violência desse processo. É o mesmo mundo que a brasiliense Pauliny Tort aborda em seu excelente livro de contos Erva brava (editora Fósforo), e que os paranaenses Wilson Bueno e Cristóvão Tezza (em romances iniciais) ou o mato-grossense Joca Reiners Terron igualmente tematizam. Estamos vendo a construção lenta de uma interpretação, via narrativa, desse brutal capítulo da vida brasileira.