Fiquei órfão aos 64 anos, o que não sugere nada de trágico. Vi meu pai definhar e morrer, na sexta-feira passada, aos 90 anos, onze meses depois de ter morrido minha mãe. Eles estiveram juntos por 70 anos, desde o namoro — os dois foram o primeiro amor um do outro, e assim foi pela vida afora. Sem a mãe, a vida dele perdeu a âncora.
Bruno Inácio Fischer. Carregava uma falta absoluta, que desde a minha infância era sabida silenciosamente por todos em casa: sua mãe morreu dias após o parto, e ele foi criado nos primeiros tempos pelos avós paternos; quando finalmente foi morar com o pai e os irmãos, meu vô, Beno, tinha já casado com uma mulher de coração grande e dedicação maior ainda, a vó Maria, que cuidou dos quatro pequenos da finada Rosa Ana e ainda teve colo para outros seis filhos.
A morte da vó era visível para nós, os filhos do Bruno, porque um raríssimo retrato dela enfeitava a cabeceira da cama do pai. Era a vó que não existia, que vivia numa dimensão angelical, reforçada pelo aspecto da foto. Essa falta foi de algum modo preenchida pela igreja católica; o pai foi seminarista jesuíta, entre os 12 e os 19 anos. Saiu de lá contra a vontade, mas se adaptou logo à vida cá fora: deu aulas de Latim a partir de 1952 e logo foi professor da minha futura mãe, Zélia.
(Tenho que parar de contar tanto; a síntese que ainda não tenho liga o piloto automático e vai mandando escrever tudo em ordem cronológica.)
Foi uma pessoa boa. Acolheu a todos os amigos dos filhos, tanto quanto acolhia, em festas como o Natal, os parentes desgarrados — desquitados, ajuntados, enfim aquela gente que a igreja oficial praticamente barrava na porta. O pai, com a decisiva participação da mãe, nunca discriminou e sempre teve sorriso amigo e providências práticas para todos.
Cenas hoje impensáveis marcaram nossa vida. A ceia de Natal, para ficar no mesmo caso, era interrompida para levar um prato da mesma comida servida em casa para o vigia da garagem ou da empresa em que ele trabalhava. Notas boas no colégio geravam um elogio e em seguida uma advertência: se mais talentos tu tens, mais tu deves colocar a serviço dos outros. Era estranho, mas fazia sentido.
Abominava o conflito aberto, porque não sabia lidar com ele. “Se tens razão, por que gritas? E se não tens, por que gritas?” — era um bordão dele. Queria o silêncio, da paz ou da autocontenção. Agora o alcançou para sempre.