Daria pra apostar que todos os leitores (as leitoras também, claro) deste texto ou tiveram covid, ou conhecem de perto alguém que teve. Não deve haver no Brasil quem esteja longe dela.
Para nossa sorte, as forças reacionárias, as anticientíficas e as especiosas (pode ir ao dicionário, mas eu explico sumariamente: especioso é aquilo que é justo e bom apenas na aparência) não foram capazes de barrar a vacinação em massa de brasileiros, o que nos protegeu dos horrores que um ano atrás não apenas matavam muitos milhares (uns 660 mil até agora), como impingiam um sofrimento infernal aos contaminados. Internações sofridas, procedimentos duríssimos para permitir o simples respirar, mais as variadas sequelas que ainda agora acometem tantos.
Eu mesmo tive covid, coisa de uns 40 dias atrás. Com três doses de vacina no corpo, pude me defender muito bem – tive sintomas de uma gripe forte, mais a perda temporária de olfato e paladar. Tudo já em dia de novo.
Muito ainda falaremos sobre esses dois anos e tanto, desde março de 2020. Muito precisaremos estudar o assunto, muito devemos escrever e ler sobre o tema.
Um primeiro resultado notável, em livro, está no mais recente trabalho de Ricardo Lísias, que lançou faz pouco Uma Dor Perfeita, pela editora Alfaguara. "Dor perfeita" é como o autor conseguiu enunciar a dor que sentiu ao ser vítima da covid, com uns quantos dias em UTI. Dores musculares, mas também dores do espírito, ao lado de incontáveis precariedades, que foram da perda de noção clara das fronteiras entre lucidez e delírio até o descontrole do corpo, essa precária carcaça sobre a qual vivemos.
O livro tem momentos de aguda tristeza, chegando a trazer passagens em que a escrita simula o delírio, o fluxo desordenado de consciência. Mas o que predomina é o relato controlado, sóbrio até, seja dando conta de dimensões comezinhas de uma UTI – os nomes dos enfermeiros, os apelidos que Lísias atribuía a eles, os gemidos escutados furtivamente, na baia ao lado –, seja narrando desencontros entre o paciente internado e sua família, mulher e um filho, com quem ele se esforçava para interagir como qualquer pai gostaria de fazer.
Livro duro, livro necessário, com momentos de profundidade humana abismal. Livro que se articula de modo muito proveitoso com todo o projeto narrativo de Lísias, um ousado que não se contenta com a trivial separação entre fato e ficção, porque quer a literatura como uma força viva.