Chico Buarque de Holanda, que figura. Acaba de lançar mais um romance, mais uma pérola, mais um profundo relato sobre o nosso tempo, desta vez mais transparente para o leitor médio do que em outros romances. Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite Derramado (2009) e O Irmão Alemão (2014) também são leituras do tempo, como aliás qualquer romance é; mas eles todos operavam numa faixa temática e histórica mais afastada do cotidiano imediato, portanto menos parecida com uma imagem forte que o autor carrega desde jovem, a de ser o intérprete das coisas que estão acontecendo. Quem não lembra, por exemplo, da força instantânea de Roda Viva, Apesar de Você, Construção e tantas outras pérolas?
Aliás, parêntese para essa identificação, essa força: muita gente, especialmente os que viram a obra do Chico nascer e se desenvolver, quando ouve os novos (e sublimes) CDs, ou quando lê seus romances, essa gente reclama – por que o Chico não faz uma nova Carolina, um novo Deus lhe Pague? Eu respondo, se cabe e quando tenho paciência: porque ele já fez tudo isso, não precisa fazer de novo. Um artista genuíno, ainda mais um artista que domina seu meio expressivo a fundo, nunca faz o mesmo, foge como pode das reiterações, ainda que se mantenha fiel a si mesmo.
O Chico romancista tem sido abominado por essa gente, que queria que ele fizesse a mesma A Banda, o mesmo Com Açúcar, com Afeto. Essa gente está errada, porque o artista é aquilo que ele é, e seu projeto se lança no mundo com a força que tem para intervir na conversa pública do jeito que ele achar conveniente. Se essa obra vai permanecer ou não, é questão em aberto.
Agora, Essa Gente, o novo romance. Escritor que teve certo sucesso está travado na criação, separou-se da mãe de seu filho e teve um casamento breve e esquisito com outra, sendo mais uma vez malsucedido; está endividado, pede adiantamentos sucessivos ao editor, e anda pela sua cidade, o Rio de Janeiro, em busca de criar o que precisa criar. E o tempo é exatamente este aqui, com este governo federal ultra-agressivo e antihumanista. Livro que se lê em poucas horas, Essa Gente adensa nossa percepção do presente, especificando aspectos da opressão reinante: atua com uma lâmina certeira no fatiamento dessa absurda nuvem concreta que nos tira o fôlego. Não, Chico não fez um romance apenas contra a estupidez, porque seus personagens são complexos e sua visão das coisas não nasce de juízos triviais.
Tese para conversa no bar: cada vez fica mais claro que, no conjunto de sua obra – canção, teatro e romance –, Chico é um artista maior da língua portuguesa. Na minha seleção brasileira de todos os tempos, é titular junto com poucos outros. Acho mesmo que ombreia com Machado de Assis.