O genial João Gilberto foi submetido a exame de sanidade, faz pouco, em função do processo de impedimento a que está submetido – a filha Bebel está querendo, diz, preservar o pai de perder dinheiro e de ser manipulado pela atual esposa. Entra um médico na casa do músico e faz perguntas elementares, para averiguar se ele está bem. Até que vem a questão: “Quem é o presidente atual da República?”. João demora um pouco e responde: “Vocês não vão me obrigar a dizer o nome desse sujeito”. Não tinha esquecido.
Jânio Quadros foi eleito em 1960 (renunciou em 61); Collor de Mello foi eleito em 1989 (renunciou, para evitar o impeachment, em 1992); e agora em 2018 temos de novo eleição presidencial, com o risco de ser eleito outro mistificador. São dois ciclos de 29 anos cada, de 60 a 89, de 89 a 2018. Certa vez, Ivan Lessa fez uma frase tristemente engraçada, mas com outra conta: segundo ela, o Brasil a cada 15 anos esquece o que acontecera nos 15 anteriores. É o dobro, Ivan.
Há duas semanas, o escritor Bernardo Carvalho comentou de passagem, em sua coluna na Folha de S. Paulo, uma circunstância nova e estranha.
O ponto era o “lugar de fala”, essa relativa novidade no cenário literário que faz um nexo imediato entre os conteúdos que alguém vocaliza ou escreve, de um lado, e sua condição biográfica, de outro. Certa visada feminista argui o homem que aborda a condição da mulher, e uma fração do movimento LGBT+ a mesma coisa acerca dos héteros e cisgêneros que abordem temas LGBT+. Também assim age parte dos movimentos identitários negro e indígena, que arguem não negros e não índios que discutam questões que tais movimentos julgam ser de sua alçada, de sua guarda, talvez de sua exclusividade.
A lebre que Bernardo Carvalho levantou é preciosa para a reflexão: a tese do “lugar de fala” recupera, talvez involuntariamente, talvez a contragosto, uma perspectiva biografista (e determinista) que a maior parte da teoria literária do século 20 tinha rejeitado vivamente – aquela que julgava a obra pela vida do autor, esta explicando aquela.
A teoria literária quis quase o contrário: a objetividade da forma artística (para Adorno, por exemplo) seria muito mais importante que a biografia do autor.
Bem, pode ser que os três casos apenas sirvam para reafirmar algo que já deveríamos saber – que a história não caminha em linha reta, nem se nutre de uma perspectiva cumulativa.