Duas Espanhas medirão forças neste sábado de outono, a partir das 11h15min (horário de Brasília) em Barcelona. Duas Espanhas que convivem juntas, mas, se pudessem, viveriam em mundos diferentes. Há clássicos e clássicos. E há o El Clásico. Ele transcende o jogo.
Quando Barcelona e Real Madrid se encaram, um país para. Mesmo quem imagine ser de outro país dentro dessa Espanha, como nos vales do País Basco ou no calor da Andalucía, é impossível ficar alheio ao confronto entre culés e merengues. Porque ele também é medição de forças entre a independistas Catalunha e o poder central. É um jogo de futebol que mexe com os sentimentos e as memórias mais profundas de um povo inteiro.
A esse caldeirão social e cultural, acrescente-se o fato de termos duas máquinas do melhor futebol do mundo. Barcelona e Real são duas espécies de seleções mundiais e muitos dos melhores do planeta estarão em campo.
Uma rápida lista: Ter Stegen, Lewandowski, Raphinha, Gavi, João Félix, Gundogan, De Jong, Kepa, Camavinga, Valverde, Kroos, Modric, Vinícius, Rodrygo, Bellingham. Na verdade, a lista não ficou tão rápida assim. E ainda ficaram de fora alguns nomes. Mas isso mostra o quanto estão equipados os times de Xavi e Carlo Ancelotti.
O mais legal de estar vivendo esse Barça x Real é que, apesar de todo o glamour deles, o ambiente na semana do clássico se alimenta das ações da vida comezinha como aí no nosso pago. Dirigentes e jogadores passaram a semana alimentando o noticiário dos canais esportivos e das rádios e dando manchetes para os jornais — esses claramente identificados, sem qualquer prurido. O que, confesso, me causa um incômodo. Não faltaram pautas.
Na sexta retrasada, o presidente do Barcelona, Joan Laporta, em discurso ao conselho de sócios, voltou a mencionar a existência de um "madridismo sociológico". Laporta condenava a inclusão do seu nome como denunciado no Caso Negreira, uma investigação que apura depósitos que somam 7,5 milhões de euros ao longo de 17 anos na conta de um dirigente da comissão de arbitragem.
Por "madridismo sociológico" entenda-se a influência do Real nas instituições espanholas. Algo que vem lá de trás, do tempo em que o clube era favorecido pelo governo por ser o time do ditador Francisco Franco, que governou o país com mão de ferro entre 1936 e 1973.
O Real, nesse período, era usado pela ditadura como símbolo do êxito e do ideal hispânico. A reação do Barcelona ao "Caso Negreira" causou desconforto no Real. Tanto que surgiu a notícia de que o presidente Florentino Pérez não viria a Barcelona para o clássico.
A justificativa para a ausência veio daqui de Barcelona mesmo. No jogo contra o Braga, Vini Jr. passou o pé na bola várias vezes diante de um jogador do Braga, pela Liga dos Campeões. Uma firula. O Barcelona, por óbvio, não tinha nada a ver com isso. Até um dirigente seu publicou um tuíte chamando o brasileiro de palhaço e que ele merecia uma "coleira".
— Não é racismo, merece uma coleira por palhaço e vacilão, o que representam essas pedaladas desnecessárias e sem sentido no centro do campo?
Colocar coleira em alguém, sim, remete a racismo. Mas, infelizmente, esse ponto nem foi tocado aqui. Os comentaristas identificados entraram em convulsão. Quando era Neymar, significava habilidade, bradavam os defensores do Real. Quem defende Vini agora, criticava Neymar lá atrás, respondiam os barcelonistas.
Na quinta, Gundogan concedeu entrevista a uma rádio e disse que Vini gostava de se exibir. Essa discussão não apagou a anterior, da indicação do árbitro. Gil Manzano foi o indicado. É um árbitro respeitado, mas com dois El Clásico no currículo. O último há oito anos, em que cometeu erro contra o Barça. Os jornais, claro, listaram todos os jogos que ele apitou dos dois times. Deu mais vitórias de ambos, mas isso nem foi levando em conta.
Todo esse contexto de diferenças históricas ganhou, neste El Clásico, a moldura de um dos lugares mais marcantes da história espanhola no último século. O Estádio Olímpico Lluis Companys recebe o jogo pela primeira vez. Aqui, estão depositadas alegrias e tristezas catalãs.
O estádio foi erguido em 1929, para a Expo e com vistas a fazer de Barcelona sede da Olimpíada de 1936. Porém, essa foi levada por Hitler para Berlim. O governo espanhol, em resposta, organizou uma Olimpíada Popular. Dias antes de ela ser aberta, estourou a Guerra Civil. O estádio virou, por um ano e meio, casa para mais de 21 mil pessoas que fugiam do terror imposto pelo exército de Franco.
Perto dali, no Castelo de Montjuic, em 1940, Lluis Companys, era julgado e condenado ao fuzilamento. Company era o governante na Catalunha no período do golpe, em 1936. Fugiu para a França, foi capturado com a ajuda da Gestapo e acabou seus dias perto do estádio que hoje batiza. O Olímpico ficou abandonado por muitas décadas. A Olimpíada de 1992 foi a chance de a Catalunha resgatar seu símbolo.
O estádio foi todo reformado. A arquitetura original acabou conservada. Hoje, é um templo do orgulho catalão no alto do morro de Montjuic, em meio a extensas áreas verdes e ladeado pelas instalações olímpicas e vizinho da Fundação Joan Miró. Todo o orgulho de um povo parece concentrado em um só espaço. Que será pequeno neste sábado. Afinal, ali estará o maior símbolo de opulência catalã enfrentando seu maior rival. No jogo e na vida.