Médico com mestrado em Ciências do Movimento Humano pela UFRGS, Luiz Crescente foi o fisiologista da Seleção na Copa da Rússia e é quem ajuda a gerenciar as energias dos jogadores do Inter há mais de duas décadas.
Ou seja, além de uma excelente conversa, é referência no assunto que entrou na pauta dos torcedores, de como enfrentar um calendário com dois jogos por semana e viagens. Por isso, a coluna foi ouvi-lo e absorver seu amplo conhecimento na área. Confira.
Qual o impacto dessa longa quarentena na vida dos jogadores, passado um mês da retomada do futebol?
Primeiro, a grande preocupação era entender o que essa parada maior do que o normal ocasionaria. Não encontrei algo relacionado ao futebol, mas muito material relacionado a corredores e outros esportes como handebol e basquete. O primeiro a observar foi nos efeitos que essa longa parada demasiada pode provocar. Fui ler e vi que, principalmente, os atletas mais jovens, com menos tempo de treinamento, sofrem mais. Nós, aqui de Porto Alegre, como tivemos 45 dias, não fomos tão afetados. Notei que os mais velhos voltaram melhor fisicamente, sofreram menos com a carga de treinos do que os mais jovens. Tivemos muito mais queixas de dor nos mais jovens.
Essa observação se aplica também com o recomeço dos jogos?
Quando recomeçaram os jogos, o que tivemos é que quanto maior for o período de destreinamento, mais os jogadores jovens vão sentir em relação aos mais velhos. Os argentinos devem estar notando isso agora e terão um grande obstáculo na retomada, porque a parada deles foi maior.
Com o acúmulo de jogos, como lidar com esse calendário de um ano espremido em sete meses?
Quando começarem os jogos teríamos de observar o período que seria obrigatório, de 72 horas entre um jogo e outro, pelo desgaste na partida. Usa-se de forma inapropriada o termo "poupar" o jogador. O que se faz, na verdade, é analisar o desgaste, ver o quanto a máquina que é o atleta está sofrendo e perceber que, se seguir naquela batida sem tempo adequado de recuperação, ele vai estourar. Se não estourar, não produzirá como antes. A preocupação é para que ele continue seu processo de recuperação depois de um jogo. Não é poupar para evitar que se lesione. Isso pode acontecer no treino. Observamos é que sem o tempo adequado de recuperação, o desempenho no jogo não será o mesmo.
Como se detecta esse desgaste?
Hoje, temos um arsenal para avaliar o desempenho do atleta. No pós-jogo, temos medições e avaliações feitas com eles. Todos os grandes clubes trabalham com métricas (através de GPS) que te indicam tudo: distância percorrida, distância em alta intensidade, velocidade máxima que executa. Com isso, você vai fazendo um somatório do desgaste. Acrescente-se a isso o que o atleta nos transmite depois do jogo, sua percepção de cansaço, de dor que sente. Juntamos tudo aos valores bioquímicos, o CK, que vocês conhecem, uma enzima que tem de estar dentro do músculo. Avaliamos através do sangue se ela está aumentada. Se saiu do músculo é porque o atleta teve grande número de pequenos rompimentos. Por vezes, a comissão técnica opta por preservar o jogador diante desse cenário todo, amparada por todas essas informações.
Teremos até novembro jogos duas vezes por semana. O que é possível prever nesse cenário?
O que acontecerá? A recuperação dos atletas será incompleta. O atleta só vai ter a recuperação completada quando o desempenho dele não for no máximo que ele pode dar. Há jogos em que os atletas podem diminuir a corrida, segurar o pique porque o time consegue tocar mais a bola. Ao não correr risco técnico, o jogador não corre riscos físicos. Com métricas menores, ele precisa menos tempo de recuperação. Assim, é possível que consiga, em 72 horas, estar apto para novo jogo. Por outro lado, há jogos em que corre mais do que o costume dele. O jogo exige que se entregue mais para segurar o resultado, e isso faz com que entregue seu desempenho máximo. Aí, o tempo de recuperação não será adequado entre um jogo e outro.
É nesse caso em que se observa a minutagem?
Com métricas menores, ele precisará de menos tempo de recuperação. Um atleta que faz mais de 10 quilômetros por jogo, correu bastante aqui no Brasil. A diferença do nosso futebol para o Europeu é o tempo de bola rolando. Lá, ela rola muito mais. Enquanto temos média de 50 minutos por partida, na Europa fica entre 60 e 70 minutos. Na última Liga dos Campeões, teve um jogo do RB Leipzig que vi em que um atleta correu 12,5 quilômetros. Esses atletas vão precisar mais tempo de recuperação. O jogador não é máquina. Por ele ter corrido essas distâncias, ter feito acelerações, significa que a musculatura dele foi exigida, teve microrrupturas, criou processos inflamatórios que precisarão de tempo. As pancadas que levam, e a gente olha na TV e acha que não são nada, requerem tempo de cicatrização. O congestionamento do nosso calendário neste ano vai levar que alguns atletas, com quase certeza, vão precisar ficar de fora de alguns jogos, para que completem o processo de recuperação.
Usá-lo por períodos menores em determinados jogos ajuda?
Se ele está acostumado a fazer 10 ou 11 quilômetros por jogo, atuando por 30 minutos fará um terço disso. Três a quatro quilômetros é carga de treino. Que é montado para o atleta correr cinco, seis quilômetros. Se ele correr nessa distância, ele não terá uma carga excessiva, que exige uma recuperação mais cuidadosa.
No meio disso ainda tem viagens, por vezes, longas.
Se você pensar que precisamos de 72 horas de descanso, isso já atrapalha. Não são todos que viajam de avião de forma natural. Para alguns, é um estresse maior do que jogar uma partida. O dia posterior ao jogo é o mais importante, é quando o atleta vai se alimentar bem, dormir bem, descansar. Imagina se ele passar quatro horas, cinco horas envolvido em uma viagem?
Porém, em um país continental, viagens longas são inescapáveis. Além de trânsito em aeroporto e deslocamentos. Como minimizar esse efeito?
O que acontece e que o atleta começa a acumular recuperações incompletas, que precisarão de tempo maior depois. Aí que entra a estratégia da comissão técnica, de enxergar isso. Por isso que os treinadores optam por tirar o cara de determinado jogo. Ele pensa: "Se tiro nesse jogo, posso contar com ele nos próximos dois."
Como faz para treinar nesse calendário?
É difícil. Se o cara está em processo de recuperação, o treino só vai aumentar o desgaste. O ganho será nenhum, só prejudicará a recuperação. Com jogo quarta e domingo, dá para treinar no sábado, por exemplo. Será um tempo curto, de um trabalho técnico que não pode ser com volume alto, sob pena de afetar o rendimento no jogo do dia seguinte.
Falamos do aspecto físico, mas há o mental, cujo desgaste também afeta muito o atleta, não?
Até pouco tempo, não se dava bola para isso. Os pesquisadores começaram a questionar que talvez o mais importante seja a recuperação mental. E isso não está se conseguindo fazer. O ideal, defendem, é que depois de um jogo o atleta tivesse um dia de ócio, sem aparecer no clube, para ficar em casa, com a família ou os amigos. Essa rotina de treino e jogo todos os dias faz com que ele passe o dia pensando em sua atividade, preocupado com questões técnicas e táticas, com o próximo voo, com o jogo. Isso leva ao acúmulo mental, que leva ao estresse. O jogador, repito, não é maquina, é uma pessoa normal, com sua vida, seus problemas a resolver. Folgas, nesse calendário, são raras. Se o estresse físico é controlado por métricas, o mental ainda não conseguimos avaliar. Usamos nossa percepção, que nos ajuda a notar algo errado. Quando o atleta relata que está muito cansado, vemos que há algo que está muito errado.