O ataque era de circo. O meia tinha um bigode que lembrava o dos xeques árabes e um carregado sotaque catarinense. O volante veterano havia sido um meia espetacular no esquadrão do Cruzeiro campeão da América dois anos antes. Os demais, ninguém conhecia. Assim era o Guarani antes de ser o único clube do Interior campeão nacional na era moderna do Brasileirão. Nesta segunda-feira, completa-se 40 anos da conquista de um time tão marcante que até hoje os apaixonados por futebol o enunciam de cor e salteado. Ou você nunca ouviu falar de Neneca; Mauro, Gomes, Édson e Miranda; Zé Carlos, Renato e Zenon; Capitão, Careca e Bozó?
Para você ter ideia do imponderável dessa conquista, no dia da reapresentação do grupo no início de 1978, os jogadores estavam no vestiário à espera do novo técnico pela direção. Sem perceber que, desde cedo, ele estava ali entre eles. O mineiro Carlos Alberto Silva, à época com 37 anos, era um sujeito com pinta de cientista. Sua única credencial era a boa campanha com a Caldense no Estadual de 1977. Quando os dirigentes apontaram para ele na apresentação, os jogadores se entreolharam. Desconheciam totalmente quem era.
A conquista do Brasileirão de 1978 alavancou a carreira de Carlos Alberto. A partir dela, conquistou títulos em clubes como São Paulo, Cruzeiro e Porto, de Portugal. Também comandou a Seleção Brasileira que faturou a medalha de prata na Olimpíada de Seul 1988. A façanha do Guarani mudou a vida de todos no Brinco de Ouro da Princesa. E Campinas entrou no mapa do futebol.
A guinada começou de forma branda na largada de 1978. Naquele ano, o Brasileirão foi disputado no primeiro semestre, entre março e agosto, com a Copa da Argentina no meio. O campeonato era um monstrengo com 74 times. Na primeira fase, formaram-se seis grupos regionalizados de 12 clubes - dois deles tinham 13, para fechar a conta. Avançavam os seis primeiros. O Guarani se classificou em quinto, com cinco vitórias. Na segunda fase, havia quatro grupos de nove equipes – além de 32 numa repescagem que levava à terceira, direto. Nela, 32 clubes foram divididos em quatro chaves – um banquete para os adeptos do formulismo. Passavam seis, e o Guarani avançou em quarto. Foi na abertura da terceira fase que o time se deu conta de sua força.
O jogo tem dia, data e hora. Foi no chuvoso domingo de 2 de julho, em um Beira-Rio com cimento molhado e apenas 10.131 pagantes. Só que a partida começou antes, lembra Zenon, hoje aos 64 anos e comentarista esportivo no SBT de Campinas. Na véspera, no hotel, os jogadores saíram do almoço e foram para a sesta. Ligaram a TV para esperar o sono justamente no Portovisão, no Canal 10 - uma espécie de Jornal do Almoço da TV Difusora (hoje, Band). Ali, Lauro Quadros fazia seu comentário diário. Ele próprio conta. Mas, antes, contextualiza:
– Não era neófito, tinha 19 anos de radiojornalismo, quase 10 de TV, tinha feito a Copa do Chile, jogado pingue-pongue com o Garrincha, entrevistado o Pelé no vestiário do Maracanã. Só que o time do Inter era espetacular, tanto que seria campeão no ano seguinte.
Lauro estava diante das câmeras, empertigado, quando começa a ler a escalação do Guarani.
– Olhei, estava escrito Capitão, Careca e Bozó. Estou no ar na TV, gostava de fazer caras e bocas e uns trejeitos. Daí, leio o ataque, Capitão, Careca e Bozó. Imediatamente, reagi: "Capitão, Careca e Bozó? Não é futebol, é circo. Capitão, Careca e Bozó é circo" – relembra, aos risos.
– Aquilo mexeu conosco, nos fez entrar em campo com mais determinação – relembra Zenon.
Os jogadores que desconheciam o comentário tomaram ciência dele no vestiário. Carlos Alberto Silva usou a gravação na preleção. O resultado disso foi que, aos quatro minutos, Renato recebeu de Careca, driblou Gasperin e fez 1 a 0. Aos 40, o ataque de circo funcionou. Careca cruzou para Bozó. Era o 2 a 0. Time paulista emendou série de 11 vitórias consecutivas
O jogo era cheio de simbolismos para o Inter. Naquela semana, o presidente Marcelo Feijó havia mandado um carro buscar Batista em casa, no bairro Niterói, em Canoas. O volante curtia folga depois da Copa da Argentina, em que voltou como destaque, ao lado do zagueiro Oscar. O descanso durou dois dias. O Inter o convocou para jogar e atrair a torcida. Preparou até uma homenagem para ele antes da partida, que também marcava a estreia de Cláudio Duarte como técnico efetivado, depois de quatro meses de interinato.
O ambiente do Inter era de tanto otimismo que o título da matéria de ZH sobre o jogo naquele domingo era "Título começa a ser testado". Também pudera.
O meio-campo colorado tinha Caçapava, Falcão e Batista, cuja volta havia colocado Jair, o Príncipe Jajá, no banco. Na esquerda, Wanderley (hoje Vanderlei Luxemburgo) era um esforçado lateral. Só que o Guarani atropelou. Aos 38 minutos do segundo tempo, Zenon ainda faria o terceiro. Foi um dos gols mais bonitos da história dos Brasileirões. Ao perceber a linha de impedimento do Inter, Zenon lançou para ele mesmo e tocou na saída de Gasperin.
– Fizemos 3 a 0 e poderíamos ter feito mais. O jogo contra o Inter foi marcante, era um baita time – observa Renato, hoje com 62 anos e atual coordenador da base do Guarani.
– Foi 3 a 0 e poderia ter sido um monte. Perdemos sete ou oito oportunidades – diz Zenon.
Na volta para Campinas, os jogadores do Guarani se reuniram no vestiário. Saíram da conversa convictos de que poderiam ser campeões. No fim de semana, ficaram no 1 a 1 com o Goiás e emendaram um sequência demolidora, com 11 vitórias seguidas. Eliminaram Sport nas quartas, Vasco na semifinal e ganharam de 1 a 0 os dois jogos com o Palmeiras na final.
-Fomos pelas beiradas, devagar. Quando quiseram abrir o olho, estávamos na semifinal - sorri Bozó, hoje com 66 anos, técnico das escolinhas do Guarani e inquilino do alojamento do Brinco de Ouro.
Atual presidente do Guarani, Palmeron Mendes Filho, tinha oito anos em 1978. Era vizinho do estádio e costumava assistir a todos os treinos. A relação era mais do que de fã e ídolo. Ao final dos trabalhos, os jogadores promoviam uma espécie de gincana com a gurizada, em cobranças de pênaltis. Quem fizesse gol no gigante Neneca, ganhava uma laranja descascada por ninguém menos do que o camisa 10 time, Zenon.
– Aquele time mostrou ao mundo inteiro que, no futebol, é possível uma equipe do Interior atingir um grande feito – suspira Palmeron, em vídeo enviado por WhatsApp à reportagem.
O presidente recém havia saído de um turbilhão. Na noite anterior, noticiou-se até mesmo a sua renúncia do cargo, desmentida por ele nesta sexta-feira. Hoje na Série B, em busca de lugar no G-4, o clube trava discussões quentes em seu Conselho Deliberativo sobre duas propostas de parceria para vitaminar o futebol. Vive dias bem distantes do romantismo em que o fã comia laranja com o ídolo e um time de circo marcava história.