É difícil escolher por qual ponto começar uma análise sintética, ainda que profunda, sobre o discurso de Bolsonaro na ONU, nesta terça-feira (22). Como de praxe, em respeito à tradição das Nações Unidas, o Brasil abriu a Assembleia Geral da organização, realizada de forma virtual pela primeira vez em 75 anos, reflexo da pandemia de coronavírus. Se os líderes mundiais não puderam se encontrar, um extraterrestre conseguiria compreender que algo grave se impôs sobre o Planeta Terra. Mas Bolsonaro não.
Para o presidente, houve exagero da mídia e de setores da sociedade que insistiram, na fase mais aguda do contágio, que as pessoas precisavam ficar em casa. Para o chefe da nação, quem defendeu medidas restritivas não buscou salvar vidas, mas "disseminar o pânico". Um delírio, pra dizer o mínimo.
Os Jogos Olímpicos foram adiados, a maior liga de basquete do mundo (NBA) suspendeu partidas e mesmo a Champions League foi realizada em formato completamente distinto do usual - apenas para citar grande eventos esportivos mundiais. Mas Bolsonaro acha que a imprensa do Brasil foi responsável por disseminar o pânico.
Em outro trecho, de forma quase que inacreditável, o presidente do Brasil jogou a culpa pelos incêndios na Amazônia no "índio" e no "caboclo". Repito: no índio e no caboclo. Numa análise que imprime ignorância, falta de responsabilidade e má fé.
Não é possível que o chefe de uma das maiores nações do mundo ignore a repercussão diplomática gerada a partir de sucessivos recados que o governo do Brasil (chefido por ele!) dá, de completo descaso com o meio ambiente. Bolsonaro não ficou nem vermelho (ou verde-amarelo, que fosse) em colocar a culpa em quem sofre com as queimadas.
Esqueceu-se, convenientemente, da reunião ministerial em que o titular do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu que governo deveria afrouxar regras ambientais, aproveitando o momento em que o foco da imprensa e da sociedade está voltado para o coronavírus. Em português: "passar a boiada".
Aliás, cabe lembrar aqui que fundos internacionais de US$ 4 trilhões ameaçaram retirar investimentos caso o Brasil não sinalize um compromisso no combate ao desmatamento na Amazônia. Portanto, se o Planeta não lhe comove, caro leitor, ao mesmo pense na repercussão econômica para empresas exportadoras (e consequentemente para o país).
Por fim, como não falar sobre a falsa ideia disseminada, de que o Brasil e o mundo caminham na direção de uma cristofobia? Se valem os ensinamento de Jesus Cristo, o que faz um presidente anunciar, com arma em mãos, o fuzilamento de adversários políticos? Ou sugerir que não estupraria uma colega deputada porque ela é feia e, nesta perspectiva, não merece o estupro? A que Cristo o senhor se refere?
E vou além. Que família cristã é essa que não se levantou quando o pequeno menino Miguel, de apenas cinco aninhos, morreu ao cair do 9º andar de um prédio no Recife, enquanto a mãe passeava com o cachorro da patroa? E quando o menino João Pedro foi assassinado dentro de casa? De que família estamos falando?
Que tempos. Já não bastassem as centenas de milhares de mortes por coronavírus, o Brasil ainda tem mais motivos para se envergonhar.