Há algo que me causa certa espécie na polêmica que envolve a censura determinada pelo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, na Bienal do Livro no Rio de Janeiro. Na última semana, o prefeito anunciou em seu Twitter que mandou recolher a HQ Vingadores - A Cruzada das Crianças do evento por considerar que o material configurava pornografia. "Livros assim precisam estar em um plástico preto, lacrado, avisando o conteúdo", declarou Crivella em vídeo divulgado em seu Twitter. O prefeito se referia a imagem em que dois personagens homens — vestidos! — se beijam na história em quadrinhos. Mas, afinal, que raios de mal pode causar um beijo entre duas pessoas a um terceiro ser humano que nada tem a ver com a história?
— Como é possível que algo entre pessoas com amores gere tantos desamores? Como é que algo decorrente de afetos produza tantos desafetos? — questionou o vice-procurador geral da República, Luciano Mariz Maia, em junho deste ano.
A fala ocorreu durante o histórico julgamento no Supremo Tribunal Federal em que a homofobia foi, enfim, criminalizada no Brasil. Na ocasião, os ministros da Suprema Corte entenderam que a legislação sobre racismo, em vigor desde 1989, também deverá ser aplicada contra quem praticar condutas discriminatórias homofóbicas e transfóbicas, numa decisão que representou um avanço extremamente relevante para a nação brasileira. A conclusão nada mais é do que a leitura rigorosa da constituição que diz que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".
Seguiu Mariz Maia:
— Sou de uma geração que ouvia Bob Dylan e ainda escuto Blowin' in the Wind. E me pergunto: 'How many deaths will it take till he knows that too many people have died?' Quantas mortes serão necessárias para sabermos que já morreu gente demais? Quatrocentas e vinte mortes são poucas (porque há 60 mil mortes no Brasil por ano)? O que há de comum entre todas essas mortes? (...) Essas pessoas foram mortas pelo que elas são — provocou.
O procurador tem razão. Não são poucas mortes. No Brasil, dados do Grupo Gay da Bahia (GGB) apontam uma morte por homofobia a cada 23 horas, conforme reportagem publicada pelo portal G1. Foram 126 homicídios e 15 suicídios, no período entre janeiro e a primeira quinzena de maio deste ano. Quantas mortes ainda serão necessárias? Por que o prefeito Crivella não se debruça sobre esses números?
Faria bem ao prefeito que fizesse aqui que justamente aquilo tentou proibir, num ato preconceituoso e homofóbico: ler. Leia mais, prefeito. Estude mais. Permita-se aprender e colocar-se no lugar do outro. Tente entender o que vivem diariamente pessoas que são julgadas apenas por amar. Apenas pelo que são. Entenda que um beijo não é capaz de destruir os sonhos de uma população historicamente castigada pelo abandono de seus governantes de suas cidades. Uma administração ruim, sim.