Teve início, nesta semana, em Brasília, a reparação de um dano inestimável ao patrimônio público e cultural brasileiro: o painel As mulatas, de Di Cavalcanti, vandalizado durante a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.
O trabalho de revitalização desta e de outras obras danificadas na ocasião vem sendo liderado, desde o início do ano, por um grupo de gaúchos — os melhores do Brasil na área. São professores, alunos, técnicos e profissionais formados no curso de Conservação e Restauração de Bens Culturais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
A convite do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), os especialistas têm se revezado no laboratório montado no subsolo do Palácio da Alvorada.
A catástrofe climática afetou o ritmo do trabalho, porque muitos deles tiveram de voltar ao RS do para salvar acervos submersos. Ainda assim, já foi possível concluir a recuperação de 15 obras, de um total de 20 selecionadas (as mais prejudicadas pela ação dos vândalos).
Pelo tamanho (são 3m5cm de comprimento por 1m20cm de largura), pelo valor (estimado em milhões de reais) e pela gravidade dos danos (sete punhaladas e uma escoriação), o mural de Di Cavalcanti se tornou alvo de uma operação delicada.
A tela foi fotografada em detalhes e já passou por uma série de procedimentos técnicos que recuperaram a parte estrutural (incluindo, por exemplo, o conserto de uma das 12 travas de sustentação, na parte de atrás da pintura, que estava quebrada). No verso da tela, os experts também tiveram o cuidado de aplicar um tecido transparente no lugar de linho.
— A ideia, com isso, é deixar que as marcas da violência fiquem visíveis na parte de trás, para que as futuras gerações saibam o que aconteceu e para que a brutalidade não se repita. Na frente, as punhaladas ficarão imperceptíveis — garante Andréa Bachettini, à frente do projeto.
O restauro deve ser concluído em setembro.
Quem foi Di Cavalcanti
Ícone do movimento modernista da década de 1920 no país, Di Cavalcanti (1897-1976) foi um pintor do povo. Ao longo de sua trajetória artística, o carioca retratou um Brasil miscigenado e popular, mirando na construção de uma "arte nacional", identificada com a realidade brasileira.
Nos traços de Di Cavalcanti, a estrela é o Brasil das favelas, das pessoas negras e mulatas, dos operários, dos candangos, do samba e do carnaval. Havia, nas suas obras, um compromisso social e uma posição política bem definida.
Em 1928, depois de uma temporada vivendo em Paris, o pintor se filiou ao Partido Comunista do Brasil (PCB). Foi perseguido durante a revolução de 1932 e acabou atrás das grades por suas posições. Não se deixou abater. Na sequência, tornou pública uma série de 12 desenhos chamada A Realidade Brasileira (de 1933), com uma sátira explícita ao militarismo de então.
Por mais que alguns detestem Di Cavalcanti, ele marcou a história da arte brasileira contemporânea e levou o nome do país aos principais centros do mundo.
Não bastasse isso, o painel deflorado no Palácio do Planalto é patrimônio público estimado em milhões de reais — a título de comparação, em 2019, um mural de estatura semelhante de Di, intitulado Bumba Meu Boi, foi avaliado em R$ 20 milhões em uma feira de arte em São Paulo.