Difícil rever as cenas de depredação do ato terrorista de domingo, em Brasília, e não sentir o estômago embrulhar. Entre o patrimônio público e histórico destruído pelos criminosos durante a invasão das sedes dos três Poderes, uma das perdas chama especial atenção pelo simbolismo: a perfuração - a estocadas - da obra As mulatas, de Di Cavalcanti.
Ícone do movimento modernista da década de 1920 no país, Di Cavalcanti (1897-1976) foi um pintor do povo. Ao longo de sua trajetória artística, o carioca retratou um Brasil miscigenado e popular, mirando na construção de uma "arte nacional", identificada com a realidade brasileira.
Nos traços de Di Cavalcanti, a estrela é o Brasil das favelas, das pessoas negras e mulatas, dos operários, dos candangos, do samba e do carnaval. Havia, nas suas obras, um compromisso social e uma posição política bem definida.
Em 1928, depois de uma temporada vivendo em Paris, o pintor se filiou ao Partido Comunista do Brasil (PCB). Foi perseguido durante a revolução de 1932 e acabou atrás das grades por suas posições. Não se deixou abater. Na sequência, tornou pública uma série de 12 desenhos chamada A Realidade Brasileira (de 1933), com uma sátira explícita ao militarismo de então.
Por mais que alguns detestem Di Cavalcanti, ele marcou a história da arte brasileira contemporânea e levou o nome do país aos principais centros do mundo. Não bastasse isso, o painel deflorado no Palácio do Planalto é patrimônio público estimado em milhões de reais - a título de comparação, em 2019, um mural de estatura semelhante de Di, intitulado Bumba Meu Boi, foi avaliado em R$ 20 milhões em uma feira de arte em São Paulo.
É possível que os terroristas invasores não soubessem de nada disso, muito menos da história de Di Cavalcanti, mas as facadas desferidas contra o painel As Mulatas, pintado em 1962, diz muito do movimento golpista no Brasil de 2023. É o movimento da da volta da neurose anticomunista, do velho culto ao militarismo revisto e da intolerância política e social.