O jornalista Caio Cigana colabora com a colunista Juliana Bublitz, titular deste espaço
A advogada Mirele, 47 anos, é porto-alegrense. Maria, 15, é uma adolescente indígena da etnia ticuna. Nasceu em uma aldeia, no Amazonas. Sanfrid, 52, é um artista plástico e professor finlandês. Os três formam, na Capital, uma improvável família (foto) construída à base de muito desprendimento, coragem, amor e surpresas do destino.
Mirele queria ser mãe. Viveu sete anos uma relação estável, mas o companheiro não resistiu a dois anos de luta contra um câncer e morreu em 2015. Mas o instinto materno não se apagou. Meses depois, entrou com um pedido de habilitação no Judiciário para adoção. Não fazia restrições ao perfil da criança. O tempo passava e a espera parecia em vão. Achava que ser sozinha a colocava no fim da fila. Uma assistente social chegou a questioná-la se, de fato, tinha vocação para ser mãe, o que a deprimiu.
Chegou 2020 e a pandemia. Mirele decidiu em março entrar em um aplicativo internacional de relacionamento. Começou a conversar com Sanfrid. Optaram por não fazer videochamadas ou trocar fotos. A referência física que um tinha do outro eram as poucas imagens do aplicativo. Falariam apenas por mensagens escritas, para irem descobrindo afinidades.
Mas em maio ela recebeu a ligação de uma comunidade ribeirinha do Amazonas. Era sobre Maria, que vivia em um abrigo. Os pais dela – e de outros três irmãos – tiveram o poder pátrio destituído pela Justiça por violência contra os filhos. Foi o resultado de um contato trágico da família com a civilização. A menina ainda carregava as marcas das agressões no corpo e na alma.
– Mostraram um vídeo meu para Maria e um dela para mim, também para saber se queríamos nos conhecer. Quando recebi o dela, comecei a chorar na hora – recorda.
Mas e Sanfrid? Ao saber da história, não recuou da intenção de conhecer Mirele. Ele não pode ser pai biológico.
– Então disse para ele: “Vem para o Brasil e vamos casar.”
Assim foi. Mas, antes, Mirele e Maria deveriam se conhecer. O caminho seria longo. Mirele precisava ir ao Amazonas, no auge da pandemia. Tinha dificuldades financeiras à época porque seus processos não andavam. A solução foi fazer uma vaquinha junto a amigos. Comprou passagens, conseguiu hospedagem, mas era uma época de incertezas. O voo foi cancelado na véspera. Perdeu tudo. Outra vez recebeu ajuda. Enquanto tentava remarcar a viagem, que ocorreria em setembro, Sanfrid Hasselqvist conseguiu chegar a Porto Alegre. Para identificá-lo no aeroporto, combinaram que ele usaria um chapéu de viking.
Uma semana depois, Mirele embarcou. De Manaus, onde ficou baseada, até o local onde Maria estava abrigada, eram três horas e meia de estrada. Outro desafio. Motoristas receavam o trajeto pela passagem obrigatória por uma favela dominada pelo crime organizado. Ao chegar na instituição, outro baque. Disseram a ela que Maria tinha um retardo mental grave. Aflita, ligou para Sanfrid. A resposta reconfortante foi que filho não se escolhe.
Após o estágio de convivência, Maria ao fim veio com Mirele para a Capital em outubro. Mirele e Sanfrid casaram em novembro. A menina foi a aia. A advogada passou a se chamar Mirele Alves Hasselqvist. Depois, veio a maratona burocrática para regularizar a situação de Sanfrid no Brasil. O processo de adoção foi finalizado no final do ano passado. A jovem, agora Maria Victoria Alves Hasselqvist, tem certidão de nascimento e carteira de identidade novas. Victoria foi escolha própria, após Mirele contar a lenda amazônica da vitória-régia para ela. Mês passado Sanfrid também começou os trâmites para oficializar a adoção.
– Minha filha me tornou uma pessoa muito melhor. Não tem caridade nenhuma – diz Mirele.
A aventura virou livro
Maria passou por exames e foi descartada qualquer limitação intelectual. Ela é só fruto de uma cultura com uma percepção de mundo diversa. Não compreendia, por exemplo, os conceitos de ontem e amanhã. Tudo era o já. Mas os obstáculos, claro, não cessaram. Um deles foi a alfabetização. Não foi aceita em escolas particulares, conta a mãe. Hoje cursa a 5ª série na rede estadual, onde também enfrentou dificuldades de adaptação e dissabores, não exatamente com os colegas. Com o auxílio da Secretaria de Educação e do Ministério Público, as situações foram contornadas.
Essa incrível aventura virou livro. É a sua história, mas contada de forma lúdica. Maria foi lançado dia 28 abril, em uma livraria da Capital, com a presença basicamente dos colegas dela. É um e-book (disponível na Amazon), mas pode ser impresso por encomenda. Sanfrid e Maria fizeram as ilustrações. A imagem da capa (foto) é de uma pintura da artista plástica Stina Birgitta Beckman, avó de Mirele, feita em 1989, como parte de um estudo da Funai sobre os yanomamis. A foto foi encontrada por Maria em um baú da bisavó de Mirele, que também veio da Finlândia para o Brasil.
Sobre o futuro, a família pensa em mudar para um lugar com mais natureza. A menina sente falta. Projetam em se dedicar a algo relacionado à arte, também unindo o ofício de Sanfrid com a vocação de Maria para trabalhos manuais.
É uma história e tanto.