Quatro discos bem diferentes na coluna desta sexta-feira (26). Todos têm tudo a ver com uma música brasileira que segue muito viva, mesmo sem estar no centro das atenções destes tempos digitais – e neles também esteja.
Simone Mazzer: Disco Manifesto
Quando começa a ouvir Deixa Ela Falar, quarto álbum de Simone Mazzer, você quase não acredita. A voz, a letra e o arranjo vêm quase com um trator – ou uma tratora. Um clima de rock, ou funk, ou samba, ou disco, ou que seja, estridente, pesado, se instala e vai até o fim com raros momentos de pausa para respirar. Como na música-título (de Lydia Del Picchia e Luiz Rocha), a maioria das letras tem combustão instantânea e zero censura na linguagem.
Um exemplo menos contundente: “Mulheres livres, esse é o assunto/ Elas mandam bem, elas chegam junto/ Mulheres livres, meu amigo, não têm jeito/ Elas sabem o que dizem e exigem respeito” (Mulheres Livres, de Bernardo Vilhena/Simone Mazzer). Político no sentido amplo, um disco-manifesto, feminista e atacando os preconceitos contra mulheres fora dos padrões de beleza.
Tem músicas novas e antigas, de Jards Macalé, Eduardo Duzek, Ava Rocha, mas o espaço se foi e acho que já passei a ideia. Criação sonora (atenção!) da dupla Ant-Art. O encarte também é uma porrada. Viva o disco físico!
Biscoito Fino, CD R$ 55
Carlos Careqa: Templo e Melancolia
Durante a pandemia, Carlos Careqa lançou três discos – comentados pela coluna. Mas desde antes, 2018, ele vinha forjando este Somos Todos Estrangeiros, 20º em 30 anos de carreira fonográfica. E, certamente, uma de suas obras primas. Nascido no interior de Santa Catarina, radicado há décadas em São Paulo depois de passar por outros endereços, inclusive no Exterior, Careqa sempre foi um criador inquieto, fora da ordem, provocativo, iconoclasta, à margem do “mercado”. Mas desta vez o “espírito” é outro – desde o anúncio de que talvez seja seu último álbum físico. Mesmo que o ótimo Marcio Nigro, executante de toda a trama instrumental, crie climas cheios de ritmos (ares de timbalada, rock, bolero, tango, valsa), o foco se dirige para a essência melancólica das canções. Lindas e emocionantes todas, cheias de lirismo, mas com certa tristeza, muitas se referindo ao passar do tempo. Enquanto ícones da MPB parecem evitar tal tema, Careqa o evidencia como natural. O disco tem as participações das cantoras Rita Benneditto e Laura Catarina.
Barbearia Espiritual, CD R$ 40
Chegando: Antonio Flores Quarteto
Nas rodas de música cada vez mais se fala em Antonio Flores, o gaúcho que já é um dos grandes guitarristas de jazz do Brasil. Qualquer dúvida, basta ouvir Mentis Natura, seu primeiro disco, ao lado de Cristiano Ludwig (sax), Miguel Tejera (baixo) e Daniel Vargas (bateria), todos feras. Na “lida” desde guri, quando começou a tocar com seu pai, o nativista Dorotéo Fagundes, andou por palcos argentinos e uruguaios, tocou e gravou com meio mundo do Sul de todas as áreas, viveu e tocou um ano e meio nos EUA, quer dizer: tem uma baita bagagem. Mas o melhor é que faz uma música muito boa no link de bebop e cool jazz, com melodias inspiradas e arranjos maduros – não é “fominha”, todos os músicos têm espaço. Alguns títulos: Call Me Later, Inácio, Highland Avenue e Tema do Gaiteiro.
Muzikdomo, CD R$ 30 em produtooficial.com.br
Popular de Câmera: André e Natália
Ambos com formação erudita, professores de música em Londrina (PR), o já internacional compositor e violonista André Siqueira e a cantora Natália Lepri unem-se no álbum Macramê, sexto dele, primeiro dela. É obra sofisticada, camerística, tendo como base pérolas musicais populares pouco tocadas. Ao violão, viola caipira e flauta, André dialoga com a refinada voz de Natália em canções como Autorretrato (Egberto Gismonti/Geraldo Carneiro), Galho de Goiabeira (Rafael Rabello/Aldir Blanc), Idade da Televisão/Sonora Garoa (Passoca), La Pomeña (do argentino Gustavo Leguizamón). Paixão e Fé (Tavinho Moura/Fernando Brant) é a mais conhecida. Para sublinhar, as folclórico-eruditas Leilão (Heckel Tavares/Joracy Camargo) e Tamba-Tajá (Waldemar Henrique). Raro e belo disco, para se absorver aos poucos.
Kuarup Música, CD R$ 28
Estes álbuns estão disponíveis nas plataformas digitais