A porto-alegrense Dom La Nena é um daqueles fenômenos que só surgem de tempos em tempos. No Brasil ainda é pouco conhecida, mas tem uma carreira internacional praticamente consolidada. Seu terceiro álbum, Tempo, lançado há pouco, segue o sucesso dos anteriores (o primeiro, de 2013, já recebera elogios de críticos europeus e norte-americanos).
As 13 canções de Tempo afirmam a personalidade musical e poética da cantora e compositora que definiu um estilo entre o pop, a sonoridade latina e a música de câmara, e agora chega ao requinte de criar e executar todos os arranjos, fazendo seus violoncelo e piano soarem como uma banda.
Dom (de Dominique) estudou piano e violoncelo na infância, passada parte em Porto Alegre e parte em Paris, onde seu pai foi fazer doutorado (em filosofia medieval!). Apaixonada pelo cello, na volta apenas fez escala na capital gaúcha, partindo (aos 13 anos) para estudar o instrumento em Buenos Aires. No conservatório, ficou conhecida como "la nena", a menina.
Concluídos os estudos a agora Dom La Nena se mandou para Paris, onde vive até hoje e começou a destacar-se colaborando com artistas como Jane Birkin. Lançou seu disco aos 24 anos e logo começou a fazer shows nos Estados Unidos. Hoje, aos 32, e mãe, fala sobre o Tempo.
A voz suave, quase sussurrada, envolve canções melodiosas, muitas de clima onírico, como se viessem de uma névoa azulada. É o que se sente em Valsa, com letra em português; também em Todo Tiene Su Fin, em espanhol; e na nostálgica Oiseau Sauvage, em espanhol, português e francês. Samba para Você é um belo samba jovem, romântico. O fio romântico perpassa o álbum, está em Doux de Rêver, em francês, e em No Tengas Miedo e seu ar de hino. Outra em espanhol, Quien Podrá Saberlo, tem a convidada Julieta Venegas. A última faixa, Milonga, reflete sobre a finitude. Dom La Nena é apaixonante, faz o ouvinte fechar os olhos.
Mandei duas perguntas para La Nena. Primeira: tu te sentes mais brasileira ou mais cidadã do mundo?
— Esta é uma pergunta complexa. Estes dias, relendo o Rayuela do Julio Cortázar, encontrei esta citação que ele faz do Apollinaire, referindo-se a sua relação com a Argentina e com a América Latina: "É preciso estar longe para amar sua casa". Acho que minha relação com o Brasil é similar. Me sinto profundamente conectada com o Brasil e, apesar de passar dos anos e da distância, só me sinto mais brasileira. É uma verdadeira relação amorosa, com amor, ódio, paixão, distanciamento, proximidade, melancolia...
A outra: qual a memória mais marcante de Porto Alegre?
— Tenho muitas, dado que toda a minha família continua morando em Porto Alegre. Mas acho que as mais bonitas são provavelmente da minha infância... Considero mesmo como uma sorte enorme ter tido a mais bonita das infâncias em Porto Alegre! A relação que tinha com a Escola Projeto, onde estudava, e com a Escola de Música Tio Zequinha, onde aprendi piano e violoncelo, são lembranças de momentos de alegria e felicidade intensas, que até hoje me emocionam muito ao lembrar.
"Tempo", de Dom La Nena
- Álbum gravado em Lisboa para a Six Degrees Records
Bemóis & Sustenidos
Daniel Wolff e Raul Ellwanger
Chama-se Na Rua da Margem o álbum de Daniel Wolff e Raul Ellwanger, já disponível na versão digital. Gravado em 2020, com arranjos focados nos violões, celebra 10 anos de parceria e reúne canções conhecidas e inéditas com ritmos latino-americanos. Entre as conhecidas está Pealo de Sangue, de Raul; entre as inéditas, Quarentena, deles.
Alceu Valença
"Há anos eu não passava tanto tempo sozinho com meu violão", conta Alceu Valença, que acaba de lançar Sem Pensar no Amanhã, primeiro de três álbuns gravados entre novembro e janeiro últimos. Em voz e violão, o bardo pernambucano recria sucessos como Táxi Lunar e La Belle de Jour. A única inédita é o samba que dá título ao trabalho.
2º Afrodisia em Pauta
Começa nesta sexta (19) o 2º Afrodisia em Pauta, festival que reúne cerca de 50 mulheres de vários Estados com depoimentos, painéis e muita música. Entre as cantoras estão a gaúcha Nina Wirtti, Roberta Sá, Mariana Aydar, Fabiana Cozza, Nilze Carvalho e Socorro Lira. Sexta, sábado e domingo, a partir das 15h, no YouTube da anfitriã Renata Jambeiro.
Antena
"Bruma", de Antonio Adolfo
Em evidência no Brasil desde os anos 1960, depois de centrar seu trabalho nos Estados Unidos, o pianista Antonio Adolfo tem lançado quase um disco por ano. Todos com sua marca, mas singulares. Desta vez ele vai fundo em nove momentos da obra de Milton Nascimento + parceiros — o título reverencia os mortos nas tragédias mineiras de Bru(madinho) e Ma(riana).
É mais um álbum feito para o mercado internacional, com a música brasileira fluente no ambiente do jazz. Já na primeira, Fé Cega, Faca Amolada, a versão de AA leva o original para outras paisagens. E assim ele vai, falando sério e brincando com os ritmos em Nada Será como Antes, Encontros e Despedidas, Caxangá, Canção do Sal. Em quase todas os ótimos arranjos têm piano, baixo, bateria, guitarra e sopros, tocados por bambas como Lula Galvão, Leo Amuedo, Claudio Spiewak, Jorge Helder, Jessé Sadoc e Marcelo Martins. Cinco estrelas. (AAM Music)
"Autoral", de Hamleto Stamato
Filho do músico do mesmo nome que tocava sax no grupo de Hermeto Pascoal, o pianista paulista Hamleto nasceu no ano em que Antonio Adolfo começava a participar de festivais, no Rio, 1968. Mesmo sem mostrar influência, diria que seu trabalho é primo do de Adolfo.
Não deixa de ser curiosa a afinidade estilística entre estes discos deles. Em ambos os arranjos conjugam grupo básico e naipe de sopros — o trompetista Jessé Sadoc e o saxofonista Marcelo Martins também estão aqui!
Mas há grandes diferenças, a começar pelo fato de que todas as composições são de Hamleto. E três arranjos têm a forte presença das cordas da St. Petersburg Studio Orchestra, da Rússia. Um deles está na linda bossa Cris, única cantada. Entre muitos sambas e bossas, uma levada caribenha surpreende em Com Salsa. Hamleto já tocou com grandes nomes da MPB e Autoral é seu nono álbum solo. Há algum tempo ele vive entre o Rio e Amsterdã. (Independente, distribuição Tratore, CD R$ 30)