Em 2017 Gal Costa comemora 50 anos de carreira, a contar de seu primeiro álbum, Domingo, dividido com Caetano Veloso e do qual saiu o sucesso Meu Coração Vagabundo. Entre as homenagens que vem recebendo, dificilmente alguma será mais bela e perfeita que o recém lançado Fruta Gogoia, que reúne as vozes de Jussara Silveira e Renato Braz, com direção musical e arranjos de Dori Caymmi. O produtor musical Luiz Nogueira acertou em cheio ao convidá-los: enquanto Jussara é uma cantora de fina sensibilidade, voz delicada e colorida, Renato alia timbre raro e grande extensão; e Dori foi exatamente quem produziu, tocou os violões e fez arranjos para aquele hoje clássico LP de 1967. Fruta Gogoia começa brilhante já na capa de três abas com a ilustração Bicho Gal, da artista plástica Regina Silveira.
São 17 músicas selecionadas por Nogueira entre gravações de Gal de 1968 a 1985, e uma de 2003. Não fique pensando que você escolheria outras, simplesmente embarque e aproveite a luminosa viagem que começa com um dueto em Estrada do Sol (Tom Jobim/Dolores Duran). Como solistas, os intérpretes mais ou menos se alternam – e você talvez estranhe a voz de Renato em marcas registradas de Gal como Baby. Os arranjos exprimem o espírito da MPB clássica, com o grupo básico acrescido por duas participações de um octeto de sopros e quatro de orquestra de cordas. O grupo, na verdade uma seleção, tem Dori, Mario Gil e Swami Jr. (violões), Itamar Assiere (piano), Cizão Machado (baixo), Toninho Ferragutti (acordeão), Teco Cardoso (sax), Celso de Almeida (bateria) e Bré Rosário (percussão, violoncelo).
Eu gostaria de comentar cada canção, mas não dá. Pelo menos listo todas. Com Jussara: Folhetim (Chico Buarque), Volta (Lupicínio), Passarinho (Tuzé de Abreu), Meu Bem, Meu Mal (Caetano), Não Identificado (Caetano) e Linda Flor (Luiz Peixoto/ Henrique Vogeler, aquela solitária de 2003). Com Renato: Tigresa (Caetano), Só Louco (Caymmi), Pérola Negra (Luiz Melodia), Vapor Barato (Macalé/Waly), Baby (Caetano), Força Estranha (Caetano) e Modinha para Gabriela (Caymmi). Os dois juntos: Tema de Amor de Gabriela (Tom Jobim, saiu no disco da trilha do filme), Sorte (Celso Fonseca/Ronaldo Bastos), Teco, Teco (Pereira da Costa/Milton Villela, de um compacto de 1975) e Fruta Gogoia (folclore pernambucano). É disco para se saborear aos poucos. Um tipo de trabalho que, hoje, só em São Paulo se faz.
FRUTA GOGOIA – UMA HOMENAGEM A GAL COSTA
De Jussara Silveira e Renato Braz
Selo Sesc, R$ 20, nas lojas do Sesc e em sescsp.org.br/livraria.
Também nas plataformas digitais.
Fragmentações inquietantes de Curumin
Quem acompanha as ações de músicos e intérpretes brasileiros surgidos nos anos 2000 (Vanessa da Mata e Céu, por exemplo), já encontrou muitas vezes o nome de Curumin como produtor, baterista, tecladista. A carreira solo, marcada pelo primeiro álbum em 2003, evolui sem pressa – segundo saiu em 2008, o terceiro em 2012 e agora chega o quarto, Boca. É o mais, eu diria, inquietante de todos. Por quê? Porque 12 das 13 faixas exigem do ouvinte uma certa desregulamentação auditiva. “A canção não precisa mais ser canção”, diz Curumin, nascido Luciano Nakata Albuquerque, em São Paulo, 1976. Ele, mais Zé Nigro e Lucas Martins manipulam vários instrumentos, mas o que sobressai são as programações eletrônicas, ruidosas, experimentais.
A sonoridade de Curumin mescla funk, rap, reggae, samba e outros gêneros, o canto é muitas vezes fala. As letras, ácidas, refletem a fragmentação da vida e do mundo de hoje. Uma delas repete apenas as palavras “Cabeça/ Cabeça/ Hipocampo/ Hipocampo/ Cabeça”. O rap Tramela tem a participação de Rico Dalasam. Outro convidado é Russo Passapusso, também o autor de Boca Pequena Parte 2, samba-funk com ares de Jorge Ben. Aquela 13ª faixa, que fecha o disco, Paçoca, é a única no formato tradicional da canção, parceria com Andrea Dias, Anelis Assumpção, Iara Rennó e Max B.O., um sambão de cavaquinho, violão, trombone, percussão e todos cantando juntos. A cantora Ava Rocha fez o projeto gráfico da capa.
BOCA
De Curumin
Natura Musical/ Tratore, R$ 20.
Disponível nas plataformas digitais.
ANTENA
CONTOS DE BEIRA D’ÁGUA
De Filpo Ribeiro e A Feira do Rolo
Tocador de rabeca e viola caipira, compositor e pesquisador, Filpo Ribeiro se tornou conhecido como o criador do trio Pé de Mulambo, que se destacou no forte circuito da música nordestina em São Paulo lançando discos em 2011 e 2014. Tocou, entre outros, com Naná Vasconcellos, Siba, Maurício Pereira e Sebastião Biano, único remanescente da Banda de Pífanos de Caruaru. Primeiro trabalho com seu nome na capa, Contos de Beira d’Água traz junto o grupo A Feira do Rolo, formado pelo também paulista Marcos Alma (baixo) e dois paraibanos de vasto currículo, Diogo Duarte (triângulo, trompete) e Guegué Medeiros (percussão). Filpo assina a maioria das faixas. É música alegre, dançante, de sabor quase folclórico e muito bem tramada, como no baião Rabo de Arraia, no xote Chegue Devagar, no coco Vazão, na ciranda Pras Bandas de Lá.
ProacSP, R$ 22, pedidos para filpo–ribeiro@yahoo.com.br
FORASTEIRO
De Lencker
Ítalo Lencker se diz “paulistano de alma cearense” e classifica sua música como “Nova MPB” - influenciada por Jobim, Guinga, Edu Lobo, Toninho Horta, testada em muitos festivais pelo país. Com produção do músico gaúcho Rodrigo Panassolo, este primeiro álbum traz uma mistura de ritmos/gêneros na voz clara, arranjos bem resolvidos e instrumental competente. O trio básico tem o violão de Lencker, o baixo de Peter Mesquita e a bateria/percussão de Kabé Pinheiro, com atuações aqui e ali de Mestrinho (acordeom), Lautaro Michaux (piano), Raul Misturada (guitarras), metais e quarteto de cordas. Todas as canções são dele, muitas em parceria com a irmã Camila de Oliveira. O leque vai do baião meio funkeado Forasteiro à cúmbia Oferenda, passando pela valsa Tirano, a canção Deu Jazz, o xote/reggae Nano. A linda voz de Bruna Moraes (The Voice Kids) faz participação especial. Estreia promissora.
Kuarup, R$ 22, e plataformas digitais.
ARSÊNICO
De Romero Ferro
Desde 2013 Romero Ferro é destaque da nova cena de Recife. O jornal O Globo chegou a citá-lo na linha de frente do movimento de revitalização do frevo. Mas este primeiro disco nada tem de regionalismos. Produzido pelo carioca Diogo Strausz (Alice Caymmi, Chay Suede), Arsênico é embebido da sonoridade pop oitentista desde a primeira faixa, Hoje, que evoca os arranjos de teclados e metais de Lincoln Olivetti para soul, funk e rock – a música tem uma das letras mais fortes de um álbum de letras longas e fortes: “Moldar o corpo se tornou instintivo/ E a mente parou de malhar”. Se Romero mostra aqui alguma influência, não é de Capiba ou Alceu Valença, mas de Djavan e Cazuza. Em maioria dançantes, suas músicas têm cara de hit radiofônico. Entre os músicos estão Amaro Freitas (teclados), Patrick Laplan (ex-Los Hermanos, bateria) e Nego Henrique (Ex-Cordel do Fogo Encantado, percussão).
Ponto 4/Tratore, R$ 20, também em passadisco.com.br e plataformas digitais.