Minha mãe e meu pai passavam o dia fora, trabalhando. Eu e meus irmãos fomos criados por nossa avó, que cuidava da ordem na casa tendo como trilha sonora o rádio sempre ligado. Adolescente romântico, eu decorava os sucessos musicais, escrevia as letras em cadernos – e Nelson Gonçalves ocupava várias páginas. Tempos de A Volta do Boêmio, Hoje Quem Paga Sou Eu, Meu Vício é Você, Escultura, Negue. Ele era um dos ídolos inatingíveis do garoto que também gostava de rock, bossa nova e música gauchesca. Imagine como me senti quase 20 anos depois, março de 1977, entrevistando-o longamente para uma matéria que ocupou três páginas da Revista ZH com o título de "Minha vida daria um romance".
E qual não foi minha surpresa ao ler em 2008, na saudosa revista de cultura Aplauso, o texto de um jornalista (e roqueiro) 25 anos mais moço que eu, que, escrevendo sobre os 10 anos da morte do cantor, revelava-se um apaixonado por sua história e aventuras.
Cristiano Bastos, esse jornalista, é um dos autores de Metralha, biografia em quadrinhos de Nelson Gonçalves (1919 – 1998), em fase de produção, que será lançada em 2018 (marcando os 20 anos da morte e antecipando o centenário do nascimento). Pesquisador puro-sangue, Cristiano tem pelo menos três robustas referências no currículo: a co-autoria do livro Gauleses Irredutíveis – Causos e Atitudes do Rock Gaúcho (2001), o documentário Nas Paredes da Pedra Encantada (2011), sobre o mítico disco Paebirú, de Zé Ramalho e Lula Côrtes, e a biografia de Júlio Reny Histórias de Amor e Morte (2015). Ao lado dele, em Metralha, estão o desenhista Gabriel Renner (ilustrador de ZH) e o corroteirista Márcio Júnior, quadrinista bissexto, doutorando em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás.
– Nelson possui milhares de fãs, de todas as idades e épocas, espalhados pelo país, tamanho é o imaginário das canções que deixou – sublinha Cristiano. – Um personagem controverso, icônico, destemido, fora da lei, que foi ao inferno e voltou. Um artista amado por seu público e, às vezes, detestado pela dita crítica especializada. Mas esta é também uma narrativa épica, que combina com o estilo e formato que a linguagem dos quadrinhos pode oferecer. É um absurdo, se levada em conta a dimensão da obra e a importância de Nelson para inúmeras gerações para as quais cantou, que tal personagem ainda não tenha sido biografado. São mais de 70 milhões de discos vendidos, da valsa Se Eu Pudesse Um Dia (1941) à derradeira Ainda Cedo (1997). Só perde para Roberto Carlos. E segue vendendo!
Nascido em 21 de junho de 1919 em Santana do Livramento, onde seus pais imigrantes portugueses viveram por dois anos até seguir para São Paulo, entre outras atividades Nelson foi engraxate, jornaleiro, operário, pugilista (peso pena) com algum destaque e garçom. Em busca da vida artística no Rio, no início viveu a barra pesada malandra da Lapa, até, contrariando opiniões de autoridades como Ary Barroso (recomendou que voltasse a ser garçom), encontrar seu lugar ao sol nos anos dourados do rádio e na história da música brasileira durante quase 60 anos de uma carreira às vezes entrecortada – como no período em que precisou se livrar do vício na cocaína.
Depois do lançamento da biografia em quadrinhos, que terá cerca de 200 páginas e é formato inédito para um astro da música brasileira, Cristiano promete trabalhar na biografia em texto mesmo. E de onde vem o título Metralha?
– Era seu apelido mais conhecido. Sempre se disse que Nelson era gago, o que, para muitos, explicava o apelido: ele "metralhava" as palavras. Na realidade sofria de taquilalia, aceleração exagerada da fala. Mas se falando era um desastre, cantando era impecável. E imbatível.
ANTENA
SANGUE NEGRO
De Amaro Freitas
Este é o álbum de estreia do pianista e compositor de Recife que vem sendo apontado como grande revelação do jazz brasileiro. Com apenas 25 anos, Amaro tem uma maturidade que impressiona. Ele diz que sua maior influência é Capiba, histórico autor de frevos e também pianista. Mas ouvindo-o, você encontrará reflexos de Thelonious Monk, Herbie Hancock, Keith Jarrett, Brad Mehldau, João Donato, sem que esses mestres interfiram em seu estilo. Sempre límpido, seu piano pode ser minimalista, sutil, ou efusivamente rítmico na mescla de jazz com frevo e com samba. A faixa título, Sangue Negro, funde jazz contemporâneo com jazz tradicional. São seis longos temas, quatro com o trio completado por Jean Elton (contrabaixo) e Hugo Medeiros (bateria) e os outros acrescentando trompete (Fabinho Costa) e sax (Elíudo Souza). O produtor do álbum é o pianista gaúcho Rafael Vernet. À venda na loja passadisco.com.br, R$ 25,90. Disponível nas plataformas digitais.
DELÍRIOS
De Sambaranda
Idealizado pelo cantor e arranjador paulista Rafael Carneiro, o septeto Sambaranda começou a ser reunido em 2011 e chegou a 2015 com quatro homens e três mulheres. Em apenas dois anos de atividade e alguns vídeos no Youtube, já começou a ser visto como um dos melhores grupos de canto a capela do mundo. Este primeiro disco mostra harmonizações vocais empolgantes pela perfeição, a elegância e a originalidade, nada ficando a dever a formações que o inspiraram, como Take 6 e The Singers Unlimited. É uma combinação de música brasileira com elementos da música negra norte-americana em status de jazz. Entre as músicas tem Wave (Jobim), Delírio Carioca (Guinga/ Aldir Blanc), Doce Ilusão (Ed Motta/ Nelson Motta), Vilarejo (Marisa Monte/ Arnaldo Antunes), Capim (Djavan), Lamento Sertanejo (Dominguinhos/ Gilberto Gil) e, sem letra, Na Varanda (Rafael Carneiro). À venda em sambaranda.com/loja, R$ 29,90. Disponível nas plataformas digitais.
LAPPANN
De Alex Lappann
Remanescente do rock gaúcho clássico, aquele que tem o Bixo da Seda como um dos parâmetros, o guitarrista Lappann rodou bastante e liderou bandas em cinco discos, até chegar a este em que seu nome aparece sozinho na capa. Começou nos anos 80 em Santa Maria, em 1994 partiu para seis produtivos anos em Maceió, voltou a Santa Maria e desde 2008 está em Porto Alegre. No ano passado, integrou a banda Volt - fugaz tentativa de encarnar o espírito dos Garotos da Rua e que deixou um CD. O álbum de Lappann reúne gravações de várias épocas, feitas ao vivo no estúdio com diferentes músicos em teclados, baixo e bateria apoiando sua ruidosa e competente guitarra em três frentes: rock’n’roll stoniano, hard rock e blues. Ele também é um vocalista de respeito. São 13 faixas, três em parceria com Carlos Caramez, quatro em inglês. Amanhã às 22h ele faz o show de lançamento no Gravador Pub (Rua Conde de Porto Alegre, 22, infos pelo 9-9975-5450). R$ 15, à venda no show e no Facebook de Lappann.