A Argentina reverencia o grande compositor, poeta, violonista e filósofo nos 25 anos de sua morte, em 23 de maio. Este texto tem como base a entrevista que fiz com Atahualpa Yupanqui (1908 – 1992) em agosto de 1984, publicada no caderno ZH Cultura. Mas inclui trechos de outras duas entrevistas, feitas em dezembro de 1981 – uma em Uruguaiana, quando Yupanqui se apresentou na Califórnia da Canção Nativa, outra em Porto Alegre, quando se apresentou no Salão de Atos da UFRGS (também publicada em ZH Cultura).
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Por que, para suas únicas apresentações este ano no Brasil (em 1984), o senhor escolheu justamente Porto Alegre?
Porque esta região do Brasil, segundo minha experiência, segundo minha apreciação, considero que é uma das fundamentalmente mais importantes, a que oferece uma fisionomia espiritual mais de acordo com o continente sul-americano. Esta região se parece muito com minha pampa, com o sul do Chile, com os planos de Peru e Venezuela, com a grande savana da Colômbia, se parece com o que conheço do México. Há uma fraternidade no ar, na maneira de olhar de frente das pessoas - olhar de frente sem desafio, simplesmente com serenidade e com segurança. E isso é muito importante para nós, que somos observadores nativos da planura, e paisanos.
O senhor continua baseado em Paris?
Sim, vivo três, quatro meses em Paris, trabalhando na França e países vizinhos, e logo volto para a América, vou ao México, à Venezuela, e tenho vindo para cá, para encontrar-me com esta terra de gauchos.
Não pensa em voltar a viver na Argentina?
Sim, penso em fazer isso, e quero fazê-lo brevemente, pois já faz 15 anos que me afastaram da Argentina alguns inconvenientes que meu povo tinha, frente a acontecimentos políticos tristes, causados por gente que não interpretava a maneira de ser de nosso país, e que acreditava que cada jovem que levantava sua voz para cantar, ou rir, ou para afirmar sua personalidade, teria de ser necessariamente um inimigo do governo, um subversivo. Então tudo estava classificado um pouco assim. Ou se era subversivo, ou se era escravo - escravo dessa gente que assumiu, sem que ninguém a nomeasse para isso, a categoria de senhores.
Agora, nesses meses que passou em seu país, acha que a fisionomia do povo argentino ficou mais aberta?
Sim, mudou; quer dizer, vai mudando, porque a explosão de alegria e satisfação, por haver recuperado a condição para refazer um caminho de paz e serenidade, é algo como um despertar na manhã, depois de uma noite de tormentas. É uma espécie de surpresa, voltar a nascer, entender a capacidade de recapacitar-se. Eu vejo que as pessoas, se ainda não estão felizes, pelo menos perderam o medo.
Fica feliz com isso?
Claro, gosto. Há um velho provérbio gaucho: "El que ofende a otro, me ofende a mi". A ofensa não é direta a minha pessoa, mas a minha condição de homem integrado a esse país.
O senhor está com 76 anos. Como analisa a sua própria resistência física? Pergunto isso porque não pára nunca, está sempre caminhando...
Aquilo que as pessoas chamam de maturidade, ou velhice, em relação à matéria física do homem, não tem nada a ver com seu deterioramento. Eu conheço gente deteriorada que tem 30, 40 anos, e que estão bem velhinhos, porque não souberam preparar-se para outro tempo, para o tempo da meditação.
O senhor costuma meditar sempre?
A meditação busca um clima que não tenha muito ver com o torvelinho que se vive nas grandes cidades, e a mim toca muito andar por grandes cidades, de Paris a Madrid, a Nova Iorque, ao México, a Buenos Aires. Nesses lugares o rumor se converte em ruído – dificilmente o ruído se torna rumor, mas o rumor sempre está um pouco turbulento, convertido em ruído. Na música de hoje, por exemplo, põem todos os decibéis. Escuto música nas grandes cidades, e tenho nos teatros, nas grandes salas, que a nova concepção de arte musical parece que se prendeu a uma sonoridade infinitamente forte, como se as pessoas quisessem, de golpe, criar uma atmosfera diferente, onde não se note se o homem vive ou o homem morre, se a arte vive, ou a arte morre; o importante é que soe muito forte, para que a pessoa não tenha nem tempo de pensar ou sentir.
Então é contra todo o tipo de música da juventude?
Sim, sou contrário, porque penso que a música foi sendo criada pelo homem através de muito tempo, desde que no deserto ele encontrou a queixada de um camelo, a limpou porque lhe faltava um dente, a soprou e aí apareceu a ocarina, o princípio do primeiro som. A música é uma mágica que o homem foi desenvolvendo em detalhes, para sua cultura, para sua embriaguez espiritual, que logo foi elemento para sua meditação e para sentir-se feliz. São elementos que vão capacitando o indivíduo para que possa abrir as janelas por onde entra a luz da cultura, do bem-estar, do amor, da boa comunicação.
Como analisa o fato de que tantos e tantos jovens no mundo inteiro gostem de rock, dessa música que o senhor diz ser barulhenta, ruidosa?
Eu penso que a juventude é um pouco vítima de uma muito bem organizada publicidade. Os elementos de comunicação, a televisão, o rádio, o disco, o cinema, todos tendem a ser fortes, não afirmativos, mas confusos. Penso que, na hora em que as crianças podem ver filmes na televisão, às duas da tarde, e alguém diz "até logo" e toma o automóvel, o automóvel não sai lentamente, faz um ruído violento como faria Fangio (Juan Manuel Fangio, automobilista argentino que foi campeão mundial de fórmula 1 por cinco vezes, entre 1951 e 1957) ou faria vosso campeão de automobilismo, esse extraordinário jovem corredor, Piquet (Nelson Piquet, na época desta entrevista, tinha pouco mais de 30 anos e já havia sido duas vezes campeão mundial de Fórmula 1, em 1981 e 1983), vrummmmm! e desaparece como um meteoro buscando bater o recorde. Por que não dar "até logo" e sair devagar, ir desaparecendo no horizonte? Não, tudo é assim, tudo é um pouco mentira, uma mentira às vezes feita com beleza e outras vezes feita com desafio. Se isso é o mundo, então assim não entendo muito o mundo.
Quando o senhor era jovem, não gostava também de emoções mais fortes?
Sim, mas minhas emoções fortes eram saltar com meu cavalo um alambrado, por exemplo. Fazia isso e não causava dano a ninguém – nem a meu cavalo, porque sei que cavalo tenho, e o cavalo sabe que homem vai em cima. Esses são os luxos de um campeiro, que logo chega a sua casa e, se acha que deve contar a proeza, conta; se não, não conta. Isso é viver a aventura do ar livre, a alegria de viver.
De qualquer modo, mesmo considerando que grande parte disso que estamos falando é fruto de um sistema publicitário (que às vezes não tem consciência de si, pois uma coisa leva a outra e esta produz outra e assim vai), o mundo hoje tem esse tipo de mesma linha, mesmo comportamento, seja em que país for. E isso não dá nenhuma mostra de que vá mudar, voltar atrás. A única indicação que temos é de que essa história vai continuar, cada vez mais. Como é que o senhor vê isso, essa situação poderá mudar?
Eu penso que vá melhorar, porque isso tem de mudar, de alguma maneira. Neste momento vivemos a exaltação dos valores negativos, como se o mundo houvesse começado já a descrever a parábola da decadência de valores. Quando as pessoas já não são amigas do vizinho, quando não há necessidade de quem tem mais ajudar quem tem menos sem que lhe peçam, isso não pode continuar. O melhor dos verbos que o mundo tem, que eu conheço e as pessoas conhecem, é o verbo dar. As pessoas precisam aprender a dar, sem pedir em troca; penso que, quando isso acontecer, o mundo começará a sorrir de outra maneira e a conduzir-se de outra maneira.
O senhor tem esperanças?
Sim, tenho esperanças. Às vezes isso custa um alto preço. Mas devemos ter esperança em que não seja necessário passarmos por um fundo sacrifício para compreendermos que o mundo não será dos humildes, nem será para a vergonha dos poderosos, mas um estado de serenidade baseado na boa compreensão e na boa relação humana. Aí recuperaremos, para todo mundo, não para privilegiados, os prelúdios de Bach, a boa música, e os decibéis da música desaparecerão. O homem recuperará a faculdade de sentir e escutar a música como o melhor alcance da inteligência e dos anseios humanos. A música foi feita para amenizar, para fazer amáveis as horas de quem trabalha, seja ele médico, cientista ou agricultor; a música deve auxiliar o homem a sonhar e dormir tranqüilo para seguir trabalhando amanhã, uns no laboratório e outros no campo. A música é para pôr estrelas na noite, e não para tornar as pessoas loucas, não para torná-las alienadas, turbulentas.
Sua música tem atraído públicos jovens tanto na América do Sul como na Europa. A que se deve isso?
Pergunte a eles, por que perguntas a mim? Eu não sou vaidoso, se fosse diria "ah, eles são atraídos por meu verso, minhas canções, minhas melodias"... Mas isso seria estúpido. Talvez os atraia a sinceridade com que faço minhas coisas, a sinceridade com que me manifesto artisticamente, às vezes com boa sorte do ponto de vista técnico, e outras vezes, como não sou um técnico, não me saem muito corretas as coisas. Mas, sim, saem honestamente expressadas, porque não me minto, não me minto...
Os jornais europeus, sobretudo os alemães, tratam seus recitais como se fosse música erudita...
Sim, notei isso, talvez porque lhe interessa o que a mim interessa, o folclore. Tocar o folclore argentino não é saber-se de memória três chacareras, quatro zambas, dois malambos, dois chamamês. Também há música culta, há entardeceres, há o Rancho Abandonado de Williams (Alberto Williams, músico argentino, 1862 – 1882), há os cinco Tristes Pampeanos, de Julián Aguirre (compositor argentino, 1868 – 1924), música culta que se pode comparar com melodias de Schumann. Então, é uma questão de lançar-se o olhar, apagar tarde a lâmpada, escutar lentamente e sair. O povo alemão é muito receptivo, não de coisas pitorescas, mas de coisas musicais. E eu também gosto muito. Estudei 30 anos para aprender oito, 12, 14 vidalas. Às vezes as toco, às vezes as deixo passar.
O senhor e Jorge Luis Borges são considerados dois dos mais significativos e expressivos frutos da cultura argentina. O que pensa a respeito dele?
Para mim, Borges é um verdadeiro fazedor de palavras, um exemplo muito difícil de alcançar, porque ele logrou fazer sua uma condição, uma faculdade de conhecimentos e de análise das literaturas do mundo, de uma forma extraordinária. Além disso, sua imaginação, sua condição de escritor, de inventor de situações poéticas, o fazem um homem de exceção. Quando ele escreve sobre labirintos, penso que transita familiarmente por esses labirintos, sem perder-se jamais. Ele é como um velho mestre que está na esquina onde tem saída o labirinto, e nos vê passar perdidos, buscando a saída. Eu o tenho visto muito raramente, mas o leio sempre. Tudo o que Borges publica, eu procuro, seja em que lugar estiver. Chego e pergunto: "O que há de Borges? Que de novo há?". Minha família me manda recortes de jornais, então estou sempre inteirado do que diz ou disse Borges sobre acontecimentos diversos. Ás vezes ele faz um pouco de bom-humor, porque não entende os detalhes da política; mas entende o que é verdade e mentira na mente dos homens e por esse lado, por esse caminho, analisa não analisa os acontecimentos, mas as atitudes dos homens. Diz que "os ingleses, os franceses, os argentinos, os brasileiros, por sua maneira de ser, talvez desemboquem por aqui". Por esse lado faz sua interpretação, às vezes profunda, mas ele nunca é desrespeitoso. É desrespeitoso com os canalhas, com os tiranos. Mas quem não é? Todo mundo o é!
Borges e o senhor não têm pontos em contato nessa coisa do pampa, do gaucho?
Não, ele não crê no gaucho. Eu, sim, creio. Ele não acredita muito nas verdades de Martín Fierro, que afinal ele próprio diz em língua culta, enquanto Hernández (José Hernández, poeta, autor do Martín Fierro, 1834 – 1886) as diz com uma linguagem de homem criado em terrenos abertos, com paisagens que não têm nada de urbanas. Em matéria de psicologia do homem rural, Hernández conhecia tanto ou mais do que Borges. Ele fazia viver seu personagem, e aí está o difícil. Mais fácil é comentá-lo sem havê-lo vivido, que é o caso de Borges, que comenta ás vezes com eficácia e ás vezes com erros, por que ele não viveu esse personagem. Uma coisa é montar a cavalo, e outra coisa é contar como vai o que vai a cavalo.
Mudando de assunto. Poderia falar sobre seu conceito de família?
Para mim é sagrado, sagrado. Sou liberal, sou gente muito liberal, sei que há problemas de geração, que a geração atual não pensa como a minha ou como a de meu pai. Eu penso diferentemente de meu pai em muitas coisas, mas meu pai continua mandando em minhas veias, e de maneira muito importante. Às vezes, frente a alguma atitude da vida, eu sinto em meu ombro uma batidinha de um dedo firme, que me toca como que dizendo: "Epa, amigo, o que está acontecendo? O que acontece aí?". É algo que me orienta, que me dá força. É o impulso do meu sangue, onde estão os avós, onde está meu pai. Quando digo "meu pai" digo um montão de coisas que me orientam, um monte de forças diversas, que são a terra, a consciência, a educação, a tradição...
O que é "tradição", para o senhor?
Tradição não é ficar como um passadista, olhando o passado, como um reacionário, dizendo que 1900 era o melhor do mundo e nada mais. Mentira: é melhor 1920, é melhor o 30, o 40, o 50 e por aí. Mas precisamos estar preparados para o presente; preparados vindo de trás. Para que os netos vivam melhor, não se tem que matar os avós.
No Rio Grande do Sul há uma polêmica na música tradicionalista, ou nativista. Muita gente considera que dentro dessa música está uma ideologia patronal, de grandes senhores rurais e, portanto, nela não está a verdade do homem do campo, do peão, mas a verdade do estancieiro, do latifundiário. Na Argentina parece ser um pouco diferente; mas, como o senhor conhece coisas daqui, pergunto: como vê esse tipo de colocação?
As duas tendências têm razão e acho que as duas têm de coexistir em um mundo que é aparentemente democrático e livre. O grande proprietário rural, o dono do campo, gosta das tradições cantadas, da literatura popular, da história; gosta que falem de cavalos, paisagens, lutas, guerras de independência, acontecimentos da vida do campo, um arroio, uma vaca, um touro, um pássaro, uma árvore; gosta de história de sua terra cantada paisanamente. Mas às vezes ele pensa que não é tão crioula ou tão gaucha uma peña de ordem social, em que alguém tome a guitarra e diga: "Tudo isso eu também amo, mas as coisas vão mal, porque vamos nos tornando poucos em minha casa, se vão os filhos, os irmãos, se vão porque aqui se trabalha muito e se cobra pouco; todos melhoram, os de cima melhoram, mas eu não melhoro, estou cada vez pior. Minha casa está muito velha, mas não posso arrumá-la; minha vida está desgastada, não posso arrumá-la". E aí os patrões não gostam, dizem: "Cuidado com esse que está protestando muito; por que protesta tanto? Deve ser um homem influenciado por idéias estrangeiras". E não há idéias estrangeiras, não há experiências nacionais, municipais e nacionais. Por isso digo sempre: quando o homem compreender que o melhor dos verbos é o verbo dar, nada o despojará de sua riqueza. Qual é a verdade, mi amigo, qual é? Há que existir alguma categoria para dizer "gostaria que o mundo fosse melhor?". Não, não há que existir categoria, nem política, nem carnê. Há que agitar uma verdade, e mesmo quem não queira essa verdade deve fazer o possível para melhorar seu bairro, seu lugarejo, sua pequena cidade, seu vizinho, sua nação. Isso é o que deve ser feito.
Em que medida o senhor se identifica com o Brasil?
Em questões campesinas, simples, minha primeira identificação é com o Rio Grande do Sul. Ao dizer "simples", não digo vulgares. Não digo vulgares porque um homem a cavalo é um homem que pensa. Desce do cavalo, abraça sua guitarra e pensa, não caminhou por caminhar. E depois, quanto ao ritmo, a percussão, gosto da Bahia, no Nordeste, com suas diferenciações em que os versos têm menos palavras, mas muito mais conteúdo.
O Brasil esteve durante muito tempo apartado da América Latina. Mas de uns tempos para cá parece se processar uma aproximação...
Que vem em boa hora. Havia diferentes correntes e diferentes razões nessa separação, algumas econômicas, outras políticas. E também correntes nacionalistas. O brasileiro é fortemente nacionalista. O que tem às vezes de ruim é quando se torna chauvinista, assim debilitando sua bela força. O brasileiro tem muito amor a sua terra, sua linguagem, sua paisagem. O que precisa é transmitir aos demais, não com pretensão de ensinar, mas de aproximar-se. Essa medida se chama grandeza de coração. Quando todos alcançarmos o nível justo da grandeza de coração, seremos um continente de irmãos.