No início dos anos 1970, Jards Macalé não parava: compunha, tocava, cantava, dirigia, produzia, tudo em trabalhos dele e de outros. Por exemplo, entre outras coisas, tinha três canções no melhor disco de Gal, Fa-tal, e fez a direção musical do melhor disco de Caetano, Transa. É dessa época a caixa Jards Macalé 70 anos, com quatro discos: o primeiro álbum da carreira, lançado em 1972; o segundo, Aprender a nadar, de 1974; e dois volumes com o título Raro & inédito, reunindo gravações caseiras de voz e violão que pela primeira vez saem para a rua. Atualmente, basta uma olhada em sua agenda para se ver que Macalé parece reviver aqueles tempos febris. Depois de duas décadas sob o pesado rótulo de "maldito", ele vê chegar um novo público que prefere chamá-lo de "irreverente" e lota seus shows. Foi assim em 2014, quando gravou no Theatro São Pedro o primeiro DVD da carreira, e no ano passado, eletrizando a plateia do projeto Unimúsica no Salão de Atos da UFRGS.
No dia em que o produtor Marcelo Fróes lhe propôs ouvir as dezenas de fitas de voz e violão que enchiam as gavetas, Macalé vacilou. Eram gravações caseiras, muitas com primeiras versões de músicas que ele e outros artistas lançariam mais tarde, e muitas que permaneceram inéditas.
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"Relutei em revelá-las, mas Marcelo convenceu-me de que teriam algum valor, algum interesse a pessoas que não exigiriam delas perfeição como eu exijo", escreve Macalé no encarte dos discos, completando: "Acabei me surpreendendo com o violão que imprimi na época, com as levadas rítmicas e harmônicas naquele momento (...), lembrando sempre que são primeiras ideias". Sim, os registros são irregulares, ele e um gravador comum, às vezes com ruídos da casa (como a voz de uma criança) e do trânsito na rua. Valem pela história.
Entre as canções das fitas só agora conhecidas, está Crotalus Terrificus, poema de Paulinho da Viola publicado emuma revista alternativa. Macalé o musicou e, quando mostrou a Paulinho, anos depois, soube que Arrigo Barnabé já fizera isso e gravara. A versão de Macalé é melhor. Estão também Noites alegres, sem assunto, parceria com Capinan, e algumas que nem letra definitiva receberam. Rara parceria com Vinicius de Moraes, O mais que perfeito foi lançada por Clara Nunes em 1973, e Macalé só a gravaria em 1998. O engenho de dentro, com Abel Silva, demorou mais: saiu em disco em 2008. As fitas mostram ainda Macalé musicando poemas de Gregório de Matos, Brecht e Ezra Pound, e testando clássicos para os shows – como Um favor (Lupicínio) e Saia do caminho (Custódio Mesquita).
Já os dois primeiros álbuns, lançados pela Philips, são marcas definitivas daquele período não só pelo que representam como pelo valor intrínseco. Macalé estava focado na nova música brasileira, um carioca "fazendo" tropicalismo com os parceiros baianos José Carlos Capinan e Waly Salomão (na época, Sailormoon). O LP de estreia tinha dois violões, ele e o mitológico Lanny Gordin (também baixo) e o não menos Tuti Moreno na bateria, em Farinhado desprezo, Mal secreto, Movimento dos barcos, e tal. Em Aprender a nadar, esse trio deu lugar a 20 grandes músicos e orquestra, com um resultado muito mais radical, mesclando tradição, experimentalismo e, enfim, ruptura com o status quo fonográfico, na "linhada morbeza romântica" de músicas como Rua Real Grandeza e Anjo exterminado. Vem daí a história do "maldito".
Há alguns anos sem compor, os novos tempos animaram Jards Anet da Silva. Com parceiros letristas da nova geração, ele promete um disco de músicas inéditas para 2017.
JARDS MACALÉ 70 ANOS
Caixa com quatro discos, selo Discobertas, R$ 87,90. Também nas lojas o LP do primeiro álbum, a R$ 118,90.