Geraldo Flach e Ivan Lins fizeram vários shows juntos – todos gravados ao vivo em equipamentos de qualidade. A ideia de produzir um ou mais discos com uma seleção desse material era antiga. Na última terça-feira, enfim, mais de cinco anos depois da morte de Geraldo, foi lançado em Porto Alegre, durante a Festa Nacional da Música, o álbum Muito bom tocar junto, com gravações feitas em shows no Theatro São Pedro (1998) e no Teatro do Bourbon Country (2009).
Trata-se de um trabalho de alto quilate, que sem dúvida merecia chegar aos ouvidos de mais pessoas no Brasil e no tempo, indo além da memória de quem assistiu às performances no passado. Selecionadas por Geraldo, as gravações já estavam com Ivan quando ocorreu a morte do pianista gaúcho, em 2011, aos
65 anos. Mas a confecção do disco só se definiu em 2015, com a entrada em cena de Roni Barboza, amigo e conhecedor da obra de Geraldo, e do entendimento de Ivan com o produtor Marcelo Fróes, do selo Discobertas.
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Eles se conheceram em 1968, no Rio, participando do 1º Festival Universitário da Canção. Geraldo defendia sua música Novo rumo, cantada por Elis Regina, e Ivan estava na sua Até o amanhecer, com Cyro Monteiro. "A partir daí, uma fortíssima amizade se construiu; ir a Porto Alegre era estar com ele o tempo que fosse ou desse", lembra Ivan no encarte do álbum. Estive muitas vezes com os dois em noites de churrascos na casa de Geraldo e Ângela na zona sul de Porto Alegre, onde havia um piano e onde Ivan se hospedava. A primeira vez que os entrevistei foi nessa casa, para uma matéria publicada em ZH no dia 4 de junho de 1988. Já tinham passado dias e dias tocando em um estúdio no Rio, tramavam o duo para o projeto de um disco instrumental de piano acústico e teclados eletrônicos, pensando também no mercado internacional. "De todos os músicos que conheço Geraldo é o que considero mais íntimo, sem falar que é um irmão para quem eu falo das minhas coisas", me disse Ivan.
Temas instrumentais abrem e fecham o álbum
O álbum instrumental ficou nos ensaios, não foi gravado. Pelo menos não daquela maneira, pois nas fitas de shows que Geraldo guardou há material suficiente para isso. E em Muito bom tocar junto tem presença simbólica: a faixa de abertura, O mapa da cidade, e a de encerramento, O voo da águia (ambas de Geraldo), são instrumentais. Na primeira, com uma alegre levada rítmica caribenha, Ivan faz vocalizes e imita um trombone, ao lado de Ricardo Baumgarten (baixo), Ricardo Arenhaldt (bateria) e Giovani Berti (percussão), enquanto Geraldo manda ver nos improvisos. O público vem abaixo. Na outra, tema bem conhecido, o percussionista é Fernando do Ó e há o acréscimo da guitarra de Leonardo Amuedo – tirando o uruguaio-carioca Amuedo, os demais formavam o afiadíssimo Geraldo Flach Quarteto.
No meio delas, sempre com o quarteto, Ivan explora os teclados e solta a voz em Último desejo (Noel Rosa), As pastorinhas (Noel/Braguinha), Acqua Marcia (parceria com Marina Colasanti, linda, inédita), Lembra de mim (com Vitor Martins), Meu país (também Vitor, o Hino da Bandeira em final emblemático), Estrela guia (mais Vitor, tocante homenagem a Milton Nascimento).
Homenagem a Elis, Se eu quiser falar com Deus (Gilberto Gil) tem só Ivan e percussão. Milton e Elis, artistas decisivos na carreira do compositor. Dois grandes sucessos foram feitos com a Orquestra de Câmara Theatro São Pedro: Aos nossos filhos e Novo tempo. Nunca, em nenhum outro disco, se ouve Ivan com arranjos de Geraldo – e aí está o grande diferencial do álbum. Que é todo de fato muito bom, com alguns momentos de arrepiar. Né, Gegê?
Serviço
MUITO BOM TOCAR JUNTO
De Ivan Lins & Geraldo Flach
Edição de áudio e mixagem de Vanderlei Loureiro, foto de capa de Liane Neves, selo Discobertas, R$ 24,90.
ANTENA
VIOLA DE MUTIRÃO – DO SERTÃO AO MUNDO
De Chico Lobo
"Eu falo de um Brasil que ainda existe", diz a letra de Meu chão, referindo-se à vida, à cultura e à natureza dos interiores. Nessa canção telúrica, Chico Lobo recebe o primeiro convidado do novo disco, Renato Teixeira. Um dos mais ativos violeiros do país, o mineiro Chico não faz um trabalho tradicional de música caipira ou moda de viola; vai além, em busca de outros horizontes. Várias canções lembram o espírito do clássico Disparada – que não por acaso é uma das faixas. Chico canta o homem e seu destino, mas é mais lírico, mais amoroso. E é um disco de violeiro, claro, que compõe lindamente catiras e cateretes. Os demais convidados são Maria Bethânia (em Maria, que ela lançou), Paulinho Pedra Azul, o Quinteto Violado, acompanhados por viola, violão, acordeão, violino, baixo, bateria... Antes do fim, outro clássico, Asa branca (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira). Acorde Brasileiro homenageia esse festival realizado em Porto Alegre. Kuarup Música, R$ 20.
SAMPATHIQUE
De Nicola Són
O francês Nicola Són ouviu na adolescência Lígia (Tom Jobim), com João Gilberto, e começou a se apaixonar pela música brasileira. Anos depois, já músico, chegava ao Rio para estudar português e pesquisar a cultura musical do país. Andou por várias regiões. Em 2011 veio o primeiro resultado: o álbum Parioca, com samba e bossa nova. Em 2013, mais um: Nord Destin, embebido de música nordestina. E agora, fechando a trilogia, sai Sampathique, dedicado a São Paulo. Com competentes músicas próprias, Són visita o samba de Adoniran Barbosa, o tropicalismo dos Mutantes, o samba-rock do Trio Mocotó, o experimentalismo da Vanguarda Paulista, tudo antropofagicamente deglutido. Bom violonista e cantor (com leve sotaque), ele faz um disco inteligente, moderno, jovem, dançante, com letras (em português e francês) que dizem. Produção de Paulo Lepetit, participações de Edgar Scandurra, Zeca Baleiro, Adriano Magoo, Swami Jr. e outros. Discole Música, R$ 30.
TODO SENTIMENTO
De Mauro Senise e Romero Lubambo
Aos 34 anos de carreira, o saxofonista e flautista Mauro Senise está a todo vapor. Depois de lançar um álbum só com músicas de Gilberto Gil (comentado aqui em junho), retorna com este ao lado de Romero Lubambo, carioca radicado desde 1985 nos EUA, onde é tido como um dos grandes violonistas do jazz. Amigos desde os anos 1980, fizeram o primeiro disco juntos em 1997. "Tocar com ele é um prêmio", diz Mauro. "Ele só me faz tocar melhor", diz Lubambo. Então, o que se ouve é música de altas esferas, feita com alegria e energia. Cinco das 13 faixas são em duo, entre elas Da cor do pecado (Bororó) e Always and forever (Pat Metheny). As demais têm trio ou quarteto, com Bruno Aguiar (baixo) e Mingo Araújo (percussão), destacando Chora, baião (Antonio Adolfo), Dona Teca ganhou asas (Jota Moraes), Pro Raphael (Lubambo), Candeias (Edu Lobo, com ele cantando) e Todo o Sentimento (Cristóvão Bastos/Chico Buarque). Fina Flor, R$ 28.