"Estranho", "insólito", "diferente", "singular", procuro adjetivos para dar uma ideia de Selvagem, terceiro disco de Mariano Marovatto, e nenhum desses me satisfaz, pois não resumem verdadeiramente a integridade do trabalho. Para começar, as oito faixas do álbum se estendem por apenas 14 minutos. São pequenas canções folclóricas brasileiras e portuguesas "quase obscuras da memória comum", descobertas por Marovatto em pesquisas sobre o Modernismo – as brasileiras integram o acervo de áudio da Missão de Pesquisas Folclóricas, empreendida por Mário de Andrade no Nordeste, em 1938; as demais vêm de pesquisadores portugueses. Os detalhes da realização do disco está nos textos do Diário de Bordo publicados em seu site.
Músico, poeta e pesquisador carioca, 34 anos, Marovatto fez doutorado em poesia contemporânea na PUC do Rio, com tese sobre o poeta e letrista Cacaso (1944 – 1987). Tem sete livros publicados, um deles sobre o álbum As quatro estações, da banda Legião Urbana. Entre outros trabalhos, foi responsável pela pesquisa de inéditos e estabelecimento de texto da Poética de Ana Cristina César (1952-1983). Depois de dedicar 12 anos à universidade, há três meses ele decidiu transferir-se para Portugal, um pouco para escapar "do obscurantismo da situação política do Brasil", outro para trabalhar. Coincidência ou não, uma das canções que está no disco, vindas da pesquisa de Mário de Andrade na Paraíba, chama-se Embarquei para Portugal.
Marovatto evita o termo "resgate" para definir o trabalho: trata-se de algo mais profundo, escreve, pois "são canções que fugiram do controle musical dos grandes centros lusófonos, foram descartadas em algum momento, por alguma razão, pelo imaginário musical ao qual fomos submetidos ao longo do último século". Quase sempre com o tom da fala, o canto tem a acompanhá-lo somente a guitarra de Pedro Sá, sem qualquer efeito – Sá tocou com grandes da MPB e é o mentor da Banda Cê, que inovou o som de Caetano Veloso nos últimos discos. A cantora japonesa Ami Yamasaki participa de duas músicas. Enfim, vêm à tona, processadas, oito canções folclóricas. "Hoje nada pode ser mais avant-garde que o arcaico", filosofa Marovatto.
SELVAGEM
De Mariano Marovatto
Independente, R$ 20, pedidos para mariano@marovatto.org.
Disponível nas plataformas digitais.
Gabriel Romano: gauchesco e universal
Uma das coisas de que o Rio Grande não pode se queixar é da falta de música regional instrumental de qualidade. Depois de nomes como Borghetti e Yamandu (para citar apenas os mais conhecidos) pavimentarem o terreno, o Quartchêto ensejou uma nova abordagem, abrindo espaços para formações surgidas nos anos 2010, como o Quinteto Canjerana, que lançou o primeiro álbum em 2015, e Gabriel Romano & Grupo, que lança o segundo disco, Doce é a passagem. Acordeonista formado em música pela UFRGS, Romano tem 28 anos e atua profissionalmente desde os 15. Compositor e arranjador inteligente, antenado e com grande capacidade de liderança, diz que suas influências vão de Hermeto a Piazzolla, passando por Dominguinhos e Gilberto Monteiro.
Em Doce é a passagem, que tem quatro indicações ao Prêmio Açorianos, o grupo vira às vezes uma orquestra. O sexteto básico se completa com Neuro Junior (violão 7 cordas), Fabrício Gambogi (guitarra), Wagner Lagemann (baixo), Ricardo Panela (percussão) e Ivan Andrade (violino). A eles se agregam ora piano, ora clarinete, ora flauta. A maioria dos músicos exibe formação acadêmica. O disco começa com uma milonga portenha, Urucungo do Malungo, seguida de um vanerão cheio de climas, A suprema verdade sobre as coisas. Tem xote, candombe, batuque, samba, tango, boas pinceladas jazzy e títulos igualmente ótimos, como Homenageandu (com solo de violão) e A necessidade de se sentir importante. Um grande disco.
DOCE É A PASSAGEM
De Gabriel Romano & Grupo
Independente, R$ 15 (no Facebook) e R$ 29 (em mercadolivre.com.br)
ANTENA
DANCE COM SEU INIMIGO
De Julia Bosco
"Eu preciso te comer/ Eu preciso saciar a fome/ Tem seu nome é por você/ É que eu preciso te comer". Esse é o refrão da música Tanguloso, um tango com beats eletrônicos e quarteto de cordas, dela e do produtor/arranjador/tecladista deste disco, Donatinho. Julia Bosco mudou da água pro vinho, no primeiro álbum (2012) era uma coisa, agora é outra. Dance com seu inimigo tem algumas canções mais leves, como Maçã última (Gisele De Santi), mas sua identidade é ruidosa, casando rock e música eletrônica, com grooves certeiros e sonoridade oitentista. Diretas e vigorosas, com dor de amor mas nem tanto (como a lupicínica Pra gozar), suas letras vêm envoltas em um timbre que às vezes lembra a jovem Gal. De outros autores, há um antigo Mautner, Vampiro, que ela canta à perfeição, há o hilário carimbó Cartas marcadas, de Dona Onete. Poderoso time de músicos, Donatinho sabe. Coqueiro Verde, R$ 21,90, e plataformas digitais.
TROPICAL INFINITO
De Antonio Adolfo
Pianista de referência da música instrumental brasileira, Antonio Adolfo estreou no disco em 1964 – já são quase 30 álbuns autorais lançados. Neste último, ele faz uma espécie de regresso afetivo às pistas do Beco das Garrafas, no Rio, e aos discos de jazz dos anos 1960, quando os naipes de sopro davam as tintas. Como desde o LP Viralata, de 1979, não gravava com metais, adicionou ao seu grupo os bambas Marcelo Martins (saxes), Jesse Sadoc (trompete) e Serginho Trombone. O convite à dança vem já na primeira faixa, Killer Joe (Benny Golson), instalando-se um samba-jazz que segue até o fim. Adolfo assina quatro músicas, homenageando alguns ídolos nas outras cinco, entre elas Song for my father (Horace Silver) e All the things you are (Jerome Kern/Oscar Hammerstein), clássico com dezenas de gravações, de Sinatra a Michael Jackson. AAM Music/Rob Digital, R$ 23,50, e plataformas digitais.
O VIOLEIRO CANTA
De Almir Sater
Antecedendo a turnê nacional comemorativa dos 35 anos de carreira e 60 de idade, que estreia dia 30 deste mês em Porto Alegre (Teatro do Bourbon Country), está nas lojas a coletânea O violeiro canta, de Almir Sater. Álbum duplo com repertório selecionado pelo produtor Carlos Alberto Sion e o jornalista Tárik de Souza (também autor do comentário histórico do encarte), inclui sete faixas do primeiro LP (1981), oito do disco Cria (1986), sete de Rasta bonito (1989, gravado nos EUA) e seis de Almir Sater no Pantanal (1990). Entre as 28 músicas estão grandes sucessos do cantador de Campo Grande (MS) e parceiros, como Um violeiro toca, Estradeiro e Moda apaixonada, ao lado de clássicos como Tristeza do jeca, Rio de lágrimas e Chalana. Aqui e ali despontam convidados especiais: Tião Carreiro, Tetê Espíndola, Oswaldinho do Acordeon, o mestre gaúcho Zé Gomes. Warner Music, R$ 34,90.