Um mês e pouco atrás, registrei aqui o disco de estreia da cantora e compositora gaúcha Carolinne Caramão, dedicado à música e à religiosidade afro-brasileiras. Ela daria ainda mais força à coluna de hoje, que por algum desígnio dos orixás reúne os trabalhos de três mulheres com foco na mesma temática: a catarinense Ana Paula da Silva, a baiana Clécia Queiroz e a paulista Serena Assumpção.
A letra de Raiz forte, música que dá título ao sexto álbum de Ana Paula Silva, poderia resumir essa história: "Sou cantadora, canto a dor, canto a terra, canto o homem, canto a flor/ De vó curandeira, rezadeira, macumbeira, lavadeira, filha, neta, Iô Sô/ Venho de longe, do sul e do norte/ Minha terra é forte, sou raiz desse chão/ Batizada no tambor". Com samba, ijexá e outros ritmos de descendência africana, é um trabalho de pura felicidade musical feito por um grupo pequeno mas eficientíssimo. Além de compor com segurança e inspiração, e de cantar lindamente, Ana Paula toca um violão de gente grande, muito rítmico e preciso. Ao lado dela estão o lendário Robertinho Silva na percussão e os não menos ótimos Davi Sartori no piano e Willian Goe na bateria e percussão.
Pela unidade e a respiração perfeita do roteiro, Raiz forte é um daqueles discos em que fica difícil destacar-se faixas. As anotações que fiz mencionam, por exemplo, o colorido com matizes quase folclóricos de algumas melodias. Este é o mais autoral dos trabalhos de Ana Paula. Das 14 faixas, apenas quatro não levam as assinaturas dela e parceiros, entre elas o ijexá Coco (Chico Saraiva/Kiko Dinucci) e o clássico Casamiento de negros (Violeta Parra). Em sua Canto da cigarra, ela se define: "Sou do sul, vim sambar, vim pra cantar, sou do negro, do canto de um lugar/ Sou Obá, sou filha de Oxalá, meu Orum, minha terra e meu lar". Não entendo por que Ana Paula não é mais conhecida nacionalmente. Hoje e amanhã ela faz em sua cidade, Joinville, o show de gravação do primeiro DVD, marcando 20 anos de carreira.
Leia mais:
Vitor Ramil revela que vai ser avô; nascimento de neta deve coincidir com a conclusão do disco do músico
A nova caixa de Zé Ramalho e os relançamentos de Sandra de Sá
Também atriz e dançarina (com mestrado nos Estados Unidos), Clécia Queiroz é respeitada pesquisadora do universo afro-baiano e uma das cantoras mais conhecidas de Salvador, mas parece não se importar muito em fazer discos. Lançou o primeiro em 1997, o segundo 13 anos depois e só agora sai o terceiro, Quintais. Tudo bem, a gente espera porque vale a pena. Desta vez, partindo das tradições do Recôncavo Baiano, ela reúne uma seleção de ritmos altamente dançantes com um espírito central de negritude, festa e religiosidade. A partir do samba, do samba-de-roda, do ijexá, o universo rítmico avança (ou retrocede) para gêneros ancestrais como o jongo, o maxixe, a chula, os toques rituais ilú e vissungo. Roque Ferreira, um dos compositores mais identificados com essas tradições, é presença forte no trabalho.
Roque já foi gravado por dezenas de intérpretes famosos, de Bethânia a Zeca Pagodinho, mas na voz aberta de Clécia fica outra coisa porque ela sabe brincar, como se vê no samba-de-roda Amurê. Também dele é a lírica Nobreza, raro momento de canção lenta, um quase choro. Mas as palmas e os coros estão presentes em vários arranjos, passando mesmo a sensação de roda de amigos no quintal. No meio e no fim do álbum, momentos marcantes com o medley Homenagem a Oxum (que tem entre os autores a paranaense Dona Su de Oyá) e o medley Samba de roda, neste caso com músicas de domínio público. O projeto do disco é de Clécia e seu sobrinho, o músico e historiador Vitor Queiroz. Na produção musical e nos arranjos, Dudu Reis e Sebastian Motini, músico sueco apaixonado pelos ritmos brasileiros.
Já a carga de emoção embutida em Ascensão, primeiro e derradeiro álbum de Serena Assumpção, é indescritível. Ela morreu em março passado, de câncer, aos 39 anos, antes de ver o disco físico. Filha de Itamar Assumpção (1949 – 2003), formada em Letras e Sociologia, dedicada mais a promover a obra do pai do que a própria carreira musical, Serena deu início ao trabalho em 2009, quando recebeu do Terreiro Ilê de Pai Dessemi de Odé, que frequentava desde 2003, a missão de registrar cantos de orixás. E começou a trabalhar, com a parceria de Gilberto Martins nas composições e Pipo Pegoraro na produção, convocando cerca de 50 músicos e cantores para compartilhar a tarefa, de resultado impactante. Trata-se de um trabalho único, destinado a permanecer como referência, tanto para o candomblé como para a música brasileira.
Os cantos a Exu (que abre o álbum), Ogum, Oxumaré, Xangô, Iansã, Oxum, Iemanjá, Iroko, Nanã, Obaluaiê e Oxalá se completam com uma reza tradicional do Congo (ex-Zaire). Traçando uma história paralela, cada canto é dedicado a personalidades como João da Baiana, Caymmi, Luz del Fuego, Nina Simone, Madame Satã, Mãe Menininha do Gantois, Elis Regina, Gandhi, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Villa-Lobos. Serena é presença sólida no álbum, embora sua voz não se ouça em todas as canções. A lista de convidados impressiona, de Tiganá Santana ao grupo congolês Source de Vie, passando por Karina Buhr, Tulipa Ruiz, Tatá Aeroplano, Curumin, Moreno Veloso, Juçara Marçal, Kiko Dinucci, Tetê Espíndola, Simone Sou, Mariana Aydar, Filipe Catto, a mana Anelis Assumpção. Uma herança magnífica.