O ar condicionado mal dava conta do calor na casa de shows Fiteiro, de Belém – que vagamente lembra o nosso Opinião. Era quinta-feira, dia de Lambateria, novo projeto de som e baile criado há sete semanas por Felix Robatto, com muito carimbó, merengue, lambada, cúmbia e guitarrada.
Músico em evidência do Pará, ex-criador da extinta banda La Pupuña (2004-2010), Robatto atuou como guitarrista e produtor de Gaby Amarantos até partir para a carreira solo em 2014 – um ano depois veio o primeiro disco, Equatorial, quente e úmido.
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O calor no Fiteiro é potencializado pelos corpos na pista de dança em frente ao palco. Na quinta passada, antes do show de sua banda, Robatto promoveu a estreia da Orquestra Pau e Cordista de Carimbó, grupo de 15 pessoas com sonoridade folclórica, ritmo irresistível e intensa percussão. A atração especial de ontem seria Dona Onete.
Quem me apresentou a Lambateria foi Nilson Chaves, grande nome da música paraense, velho amigo dos primeiros tempos do Musicanto e, como eu, curador do Acorde Brasileiro, que há vários anos se realiza em Porto Alegre – a propósito, em 24 de agosto ele será o convidado de Luiz Carlos Borges no projeto Decolagem (bar Sgt. Peppers).
Andar com Nilson por Belém é ser parado a todo momento por pessoas querendo tirar fotos com ele. Não foi diferente no Fiteiro, nem no fantástico parque Mangal das Garças ou no restaurante típico Saldosa (assim mesmo) Maloca, o mais conhecido da Ilha do Combu, que fica em frente a Belém do outro lado do rio Guamá.
Ao avistar Nilson, o barqueiro que nos levou até lá começou a assobiar um de seus maiores sucessos, Sabor Açaí. Nenhum outro compositor cantou tanto as temáticas da Amazônia.
Julho tem shows diários nas ruas
Quando falei que queria conhecer pelo menos algum pedaço do Marajó, foi também Nilson que sugeriu Salvaterra, a duas horas de barco de Belém. Considerado a principal porta de entrada para a imensa ilha, é um município de 25 mil habitantes, lindas praias de água-doce e nenhum prédio com mais de dois andares.
Dei a sorte de chegar no auge das festas de verão, que marcam o mês de julho, com shows diários na praça principal. Entre grupos da região, como Boi Aventureiro e Banda Swingue Marajoara, há também atrações nacionais, como o Araketu. Sem falar nas equipes de som e seus DJs, que animam os bares das praias com muito reggae, lambada, ritmos baianos e, claro, o carimbó – que teria nascido no Marajó. O público é sempre grande, pois ao lado dos moradores há milhares de veranistas da região e turistas.
Em outra época do ano não sei, mas nesta ouve-se música o tempo todo em Salvaterra. Além dos artistas paraenses, como Dona Onete, Pio Lobato, Felipe Cordeiro, o próprio Nilson, ouvi muita MPB tipo Zeca Baleiro, Djavan, Zé Ramalho, Marisa Monte, Tim Maia. No início da semana passada, em um bar da Praia Grande, um sujeito divertia o pessoal rodando antigos sucessos, do bolero à bossa nova, gravados em forma de cover por um cantor desconhecido.
Não ouvi música sertaneja. Já Belém, repleta de todo tipo de atrações culturais (ótimos museus, por exemplo), tem efervescência musical de metrópole – no histórico Theatro da Paz, no moderno Espaço das Docas (antigo cais do porto), nos palcos da orla, nos coretos das praças, em teatros e bares, chegando à música de rua no indescritível mercado Ver-o-Peso (389 anos!).
Aprendi muito nesta visita àquele outro Brasil. Viajei a convite de mim mesmo...
ANTENA
Por uma curiosa coincidência, na terça passada eu estava escrevendo o texto principal da coluna quando chegou um envelope da Natura Musical com os discos registrados abaixo, ambos feitos com incentivos fiscais do governo do Pará:
Banzeiro, de Dona Onete – Esta cantadeira que se apresentou dias atrás no Opinião, em Porto Alegre, e que em seu estado é chamada de “a grande dama do carimbó”, tornou-se em pouquíssimo tempo uma figura nacional. Professora aposentada de Estudos Paraenses, foi secretária da Cultura do município em que viveu a maior parte da vida, Igarapé-Mirim. Sempre esteve envolvida com a cultura popular e a música, até ser “descoberta” pelos projetos culturais e a mídia, gravando o primeiro disco em 2012. Produzido pelo compositor Pio Lobato, este segundo álbum é ainda mais explosivo e colorido que o outro; Dona Onete se mostra mais à vontade, cantando com vigor, e as músicas, todas dela, têm letras muito bem construídas que podem vir tanto da mulher experiente como da jovem fogosa, ambas habitando nela. Um carimbó chamegado, a faixa de abertura, Tipiti, descreve o uso desse objeto de palha ancestral da Amazônia, usado no processamento da mandioca. Já o bolero Proposta indecente é direto: “Você pode ligar pro meu celular/A hora que você quiser/A proposta está de pé/ Você pode passar o inverno comigo/E se a gente se der bem/Passa o verão também”. Ao lado do puro convite à dança, as músicas têm muita sensualidade – o que não deixa de contrastar com a imagem da bisavó de 78 anos. Mas esse é um dos encantamentos de Dona Onete, uma força da natureza a mostrar que nunca é tarde para se começar um projeto de vida. Na Music/Natura Musical, R$ 30
Cine Ruptura, de Saulo Duarte e A Unidade – Em 2015 comentei aqui o segundo álbum deste cantor, compositor e guitarrista de 27 anos, paraense radicado em São Paulo desde 2008. Era um disco bem... paraense. Já neste, só encontramos o Pará nas entrelinhas. Com a determinação de apresentar “outros lados” da sonoridade de sua banda, Saulo chamou o bamba Curumin para produzi-lo. O resultado é um trabalho cheio de quebradas, enérgico, ruidoso, com poucos ritmos definidos – o que mais aparece é um ska meio híbrido. As letras não se situam em um “Brasil amazônico”, mas em um Brasil urbano que pode estar em qualquer parte. Na maioria assinadas por Saulo e parceiros, as músicas estão contextualizadas com o Brasil de 2016. No texto do material de imprensa, o jornalista e produtor musical Marcus Preto compara a virtual cidade em que se passa o disco com a Eldorado de Terra de Transe (Glauber Rocha, 1967), só que em versão atual. A primeira faixa, Quem quer que seja, já antecipa o clima: “Você tem todo direito/ De comer só a cereja/ De tocar sua guitarra/ De querer virar a mesa/ Sem se ver intimidado/ Com uma arma na cabeça”. Angorá, a faixa menos incisiva, tem a participação de Ava Rocha, filha de Glauber. Triste, uma música lembra o estilo de Arnaldo Antunes. Em Mandarins, Saulo homenageia o grupo folclórico paraense Arraial do Pavulagem. Enfim, um trabalho tenso, mas consequente e musicalmente muito bem feito. YB Music/Natura Musical, R$ 25
Os álbuns estão disponíveis para streaming e download em naturamusical.com.br.
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