“O progresso é a realização de utopias.” (Oscar Wilde)
“Devemos o progresso aos insatisfeitos.” (Aldous Huxley)
Há um conceito estabelecido: se um hospital se preparar, seriamente, para o transplante de órgãos e se, por alguma razão, não conseguir fazer nenhum, ainda assim terá feito um grande investimento, porque a qualificação tecnológica indispensável ao transplante não é exclusiva para o procedimento, de tal maneira que, a partir daquele ponto, todos os pacientes que forem internados naquela instituição poderão usufruir dos recursos técnicos implantados.
O estímulo propulsor desse círculo virtuoso se convencionou chamar de “efeito locomotiva”, servindo-se dessa figura metafórica para ilustrar a conexão de muitos vagões de qualidade, que precisam ser agregados antes que o trem do desbravamento seja posto em marcha.
O saudoso Ivo Nesralla despertou esse efeito no Instituto de Cardiologia, quando, por imparável obstinação, decidiu tornar real o sonho que a muitos pareceu delirante de retomar por Porto Alegre o transplante do coração no Brasil, no embalo da descoberta da ciclosporina, no início dos anos 1980, o que mudou, por melhor controle da rejeição, a história dos transplantes de órgãos no mundo.
A paternidade dessas conquistas invariavelmente está associada à teimosia de alguém, que renunciou à zona de conforto, inconformado com a ideia de limitar o tamanho dos seus sonhos às mazelas do país em que nasceu, sem ter escolhido.
Todos os que, de alguma maneira, se expuseram ao fascinante desafio de transplantar órgãos em um país desigual, com tantas limitações estruturais e tão reconhecidas formas de pobreza, incluindo (e muito) as espirituais, testaram incontáveis vezes suas coronárias, resistiram às afrontas burocráticas do subdesenvolvimento, foram alvos preferidos dos que, não fazendo, não toleram que outros façam, e só sobreviveram porque tiveram a ventura de contar com a ajuda imprescindível e silenciosa dos melhores parceiros.
Foi inevitável pensar nisso acompanhando a repercussão, modesta, se confrontada com o tamanho da proeza, de Valter Garcia, que, com seu jeito sereno e bem resolvido, anunciou a quantidade de 6 mil transplantes de rim alcançada no final de 2023. Só quem tem experiência com transplante poderá dimensionar o tamanho da tarefa, por qualquer que seja o parâmetro da medida, que pode ser, para simplificar, o número de noites sem dormir.
Uma conquista desse tamanho será sempre uma façanha de muitos, tendo em comum a obstinação para encarar todos os obstáculos, sem nunca titubear, mesmo que sempre fosse mais fácil desistir.
Valter Garcia, como bom timoneiro, teve a coragem de puxar o cordão e a sabedoria de agrupar pessoas brilhantes, de personalidades diferentes, mas determinação idêntica. Ele sabe, e todos sabemos, que, sem os talentos de Santo Paschoal Vitola, Guido Cantisani, Maria Lúcia Zanotelli, Elizete Keitel, Clotilde Garcia (a rainha do transplante pediátrico) e o incomparável Jorge Neumann, não teríamos o que comemorar.
Caberá sempre aos pioneiros desses projetos de vanguarda despertar nos herdeiros a gana indispensável para seguir adiante, não permitindo que as maravilhosas conquistas institucionais se transformem em homenagens saudosistas de um tempo pretérito, lembrado com orgulho pelo que foi, mas com nostalgia por ter deixado de ser.
Foi por acreditar nas pessoas que a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre completou gloriosos 220 anos, embalada pelo entusiasmo frenético que espanta o pessimismo e coloca mais lenha no inferno dos desencantados.