Marcos Piangers é um cara do bem. Em um dos seus muitos textos recheados de humanismo, descreveu uma história enternecedora. Cedo da manhã, na fila do café no aeroporto, foi reconhecido por um leitor que pediu uma foto com ele. A fila se desorganizou e, quando se deu conta, tinha tomado o lugar de uma senhora. "Ops, furei fila, pode passar, minha senhora".
Foi quando ouviu dela uma frase inesperada: "Não, pode ficar, todos os dias eu tento fazer uma gentileza, e hoje já vou bater minha meta, antes das seis da manhã".
Impactado com a sensação de ela estar lhe agradecendo por isso, achou aquilo o máximo da generosidade e decidiu adotar a partir daquele instante essa rotina: ao menos uma gentileza por dia. A descrição do encantamento por esta atitude solidária e generosa corrobora uma convicção antiga: ajudar alguém produz uma sensação de bem-estar tão grande em quem ajuda que, com muita frequência, ultrapassa em intensidade a gratidão do ajudado.
A banalização do egoísmo resulta em indiferença, seu subproduto mais previsível, e como desdobramento instintivo, a desconfiança.
A neurociência documentou que esses gestos de humanismo explícito mexem com a produção cerebral de neurotransmissores, responsáveis diretos pela sensação prazerosa. A dopamina e a serotonina são os mais relevantes na estimulação da condição anímica. Não é por acaso que nos sentimos tão bem quando percebemos que fomos capazes de fazer mais feliz o dia de alguém. E, pela mesma razão, a prática do voluntariado vicia.
Dependendo da intensidade da carência do ajudado, a reação costuma gerar mais ou menos gratidão, que os médicos desde sempre aprenderam a classificar como o mais nobre dos sentimentos humanos e que, provindo do convívio com alguém assustado pelo medo de morrer, adquire proporções que outros profissionais desconhecem completamente.
À pressa da vida moderna tem sido atribuída a escassez de gentileza em relações humanas nos grandes centros, onde os pequenos gestos que traduzem nosso apreço pelo outro, e que revelam nossa visão integral do mundo a que festejamos pertencer, está sendo substituída, progressivamente por uma entidade abominável, a insignificância.
E as reações são inevitáveis. A banalização do egoísmo resulta em indiferença, seu subproduto mais previsível, e como desdobramento instintivo, a desconfiança.
Na véspera da cirurgia, sentei-me na cama do Geraldo para explicar o quanto precisávamos da sua ajuda para que o pós-operatório transcorresse sem complicações. Alertei que ele não deveria tolerar dor, porque era muito importante que ele conseguisse tossir, para expandir o pulmão e mantê-lo limpo. Quando dizia que eu e ele tínhamos então uma dupla responsabilidade neste processo, ele me interrompeu: "Mas é tudo pelo SUS, não é, doutor?".
No olhar desconfiado, toda a preocupação contra o que o mundo mesquinho lhe ensinara, e ele certamente precisava se precaver: toda essa atenção devia ter um preço.
Seria ótimo que esse fosse apenas um caso isolado de paranoia, mas na verdade é uma longa história de desapreço e discriminação. E nesta atitude preconceituosa, todos os rígidos de afeto têm uma parcela de culpa, que começou a ser construída pela falsa impressão de que "eles não entendem, mesmo!" e se consagrou na invisibilidade.
Melhor seguir a recomendação final do Piangers: "Quando não tiver mais forças para levar sacolas ou levantar uma mala no avião, ainda permitirei que me passem na frente nas filas. Na esperança de que uma faísca de gentileza possa acender uma fogueira no coração de alguém".
Quem descobriu o encanto de ajudar não precisa de argumentos para continuar.