Quem envelheceu trabalhando com jovens estudantes de Medicina, e entendeu essa atividade como um bálsamo para as agruras do cotidiano, se vê repetido em experiências que curtiu ou sofreu, festejando as mesmas conquistas ou repetindo os mesmos erros, e percebe que, apesar de todo o esforço, nunca estamos prontos. Ou que a completude é uma exclusividade dos pretensiosos, que já nascem com certificado da perfeição e aptos para uso imediato. Ou se comportam como se acreditassem nisso.
E as dificuldades de previsão de desempenho se multiplicam pela diversidade de situações em que serão testados, ainda mais quando o imprevisto decide reger o espetáculo, enchendo o palco de improvisações. Tal como ocorre, por exemplo, quando alguém resolve passar mal durante um voo, onde não há nada programado para ir além do “mantenham-se sentados, com o cinto afivelado, mesmo quando as luzes estiverem apagadas”, ou “é proibido fumar nos toaletes ou obstruir os sinalizadores de fumaça”, ou “as máscaras devem cobrir completamente a boca e o nariz, exceto durante a ingestão de alimentos (!)”, ou a clássica “em caso de emergência abandonem todos os seus pertences...”. Sem contar uma frase que sempre me assustou: “Atentem para as saídas de emergência e lembrem-se de que a mais próxima pode estar logo atrás de você”. (Quando ouço isso lembro da recomendação bizarra, digna do talento de um Stephen King: “Antes de entrar no elevador, certifique-se que o mesmo encontra-se parado neste andar”.)
Pois o voo se anunciava tranquilo, era um sábado, véspera do Dia dos Pais, e a maioria dos passageiros tinha no olhar a alegria explícita de quem voltava para abraçar o seu.
Ainda que o sobrenome do comandante, anunciado com solenidade pela comissária chefe, fosse Milagres, não passou pela cabeça de ninguém considerar que isso fosse necessário.
De repente, naquela fase do voo em que a formalidade das apresentações se esgota e todos reclinam as poltronas para um cochilo, ouviu-se a fase clássica: “Por favor, há algum médico a bordo?”. A pergunta tinha a ansiedade de uma dor no peito.
O burburinho concentrava-se na fileira 7, assento do corredor. Um casal de médicos da primeira fila, a Flávia e o Marcio, acudiu e, tomando rapidamente a história, constataram uma queda importante da pressão, e ordenaram que os vizinhos atléticos, que tinham se acercado por curiosidade, transportassem o paciente, colocando-o no assoalho, naquele espaço maior entre a primeira fileira e área de serviço. Enquanto a jovem médica (anestesista) assumiu o comando, alguém foi escalado para manter as pernas elevadas para aumentar o retorno de sangue ao coração. Outros dois médicos, mais velhos, assistiam. Um deles pareceu frustrado quando sua oferta de um isordil, que recrutara no seu estojo de medicação de emergência (médico já infartado sempre sabe o que é útil em angina), foi recusada porque não havia a dor sugestiva de isquemia. Enquanto o atendimento se processava, com o paciente já recuperando cor e voz, uma gritaria desesperada ecoava da coluna do meio, da fila 7: era a esposa transtornada. De repente, os gritos cessaram e veio a informação: ela desmaiou. Um dos médicos experientes, sabedor do quanto a respiração acelerada pela ansiedade tonteia, mas, felizmente, não mata, sussurrou: “Como o silêncio do desmaio é aconchegante!”.
Quando o avião pousou, com todos vivos e sorridentes, fiquei observando os jovens médicos, comovidos com os aplausos, mas com aquela serenidade madura de quem festeja o bônus anímico de uma vitória, com a humildade de quem sabe que nunca estaremos completamente prontos para todos os desafios futuros. Ainda mais que alguns desses sobressaltos podem vir disfarçados de inocentes colegas de viagem, capazes de compartilhar, com surpreendente naturalidade, até mesmo as assustadoras instruções “do que fazer em caso de pouso n’água”.