Muitas atitudes revelam educação ou a falta dela. Mas por mais esmerada que ela tenha sido, ainda sobrarão as diferenças pessoais reveladoras da índole, esta característica da personalidade que não pode ser ensinada, ainda que alguns exemplos da infância fiquem reverberando pela vida afora.
Meu pai dispensava qualquer empregado da fazenda que batesse nos animais, fosse o bicho que fosse. Não sei o quanto isso influiu na minha formação, mas sempre me senti um covarde nas raras tentativas de caçar alguma presa. Nunca esqueci uma tarde em que, andando na fazenda, deparei com um tatu, uma promessa de carne que, desfiada e transformada em farofa, é festejada pelos tropeiros. Eu e o tatu nos surpreendemos, acho que eu mais do que ele, mas sai em sua perseguição, o alcancei e voltei para casa orgulhoso da proeza. Mas o certo é que nunca resolvi este episódio, e lembro dele de vez em quando, como uma experiência muito desagradável de um homem grande contra um animalzinho minúsculo que tinha como única defesa a velocidade na fuga, e que não fora suficiente para alcançar a toca antes que eu o atingisse.
Não me interessei pela farofa e encerrei uma promissora carreira de caçador. E então, na contramão dos que apregoam que os médicos enrijecem com a velhice, fui ficando cada vez mais mole, e qualquer história que envolva emoção me derruba. Como o rótulo de frouxo não constrói prestígio na modernidade, a única solução que encontrei foi cultivar amigos com as mesmas fraquezas. Porque é para isso que fomos feitos, para compartilhar sentimentos iguais.
O Tolstói não merecia uma dona que batera asas e demorara três anos para voltar a procurá-lo.
Na semana passada, almocei com um desses tipos que entendem que é possível chorar sem que seja por perda ou dor, e lá pelas tantas ele confessou que tinha se chocado com uma matéria de jornal que entrevistou um administrador de um canil público de Londres, que recolhia cães perdidos na cidade e depois os preparava para a adoção. Segundo o relato, a procura de animais domésticos, especialmente cães, aumentara muito durante o confinamento pela pandemia, o que era até estimulado depois da experiência exitosa que mostrou uma redução de 50% nos índices de suicídio entre os moradores de rua, depois que a prefeitura londrina adotou a política de oferecer um cão parceiro para repartir infortúnio, fome, frio e solidão.
Mas com a pandemia arrefecendo, inverteu-se o fluxo, e agora a preocupação é como acomodar tantos cães devolvidos por pessoas que querem fazer crer tinham encontrado os bichinhos perdidos na rua, como se alguém não percebesse, pelos cuidados que cãozinho exibia, que na verdade ele estava sendo dispensado sem que ninguém se comovesse com o olhinho triste do bichinho, outra vez abandonado. Ficamos em silêncio um tempo depois desta história.
Antes da sobremesa, já estávamos recuperados com o caso de uma velhinha que aceitou o pedido da vizinha muito amiga para que cuidasse do seu cãozinho durante o tempo em que a família ficaria fora, num curso de especialização.
Três anos depois, a vizinha bateu-lhe à porta. Estava de volta, muita grata pelo cuidado dispensado e de braços estendidos para recolher o seu pet. E foi surpreendida: "De jeito nenhum, me afeiçoei ao Tolstói, ele foi meu parceirinho durante estes três anos e nem sei o que teria sido de mim sem ele". Enquanto falava, ela jura que o cãozinho sacudia a cabeça, afirmativamente.
As vizinhas nunca mais se falaram. Uma achava um absurdo que alguém se adonasse do que era seu, a outra estava convencida de que o Tolstói não merecia uma dona que batera asas e demorara três anos para sentir saudade.