Ainda que viver mais não tenha, que se saiba, compromisso com viver melhor, esta é meta mais pleiteada. Se será bom ou não a gente verá depois. Alguns muito velhos admitem que não foi uma ideia boa ultrapassar a média, e na minha experiência esta queixa está, geralmente, relacionada à irrealização dos projetos da prole.
Deixando de lado esse grupo de desencantados, a maioria festeja a perspectiva de envelhecer, muitas vezes sem nenhuma noção das perdas que virão associadas à decrepitude.
A ideia desta crônica é esquecer esses eventuais rabugentos da terceira idade em diante e fixar-nos naqueles que não viveram tanto para enfastiar e se sentem ameaçados de morte por alguma doença extemporânea.
Para esses, cada fatia de vida ampliada, não importa a que custo, é festejada com euforia — e entre os bem amados o tempo extra reconquistado nunca será suficiente.
Quando internou para a sexta operação, quase duas décadas tinham se passado, os filhos haviam crescido, estavam formados, e um neto agora alegrava a família.
Quem trabalha com transplante convive com essa população selecionada pela reciprocidade do afeto, que encanta e justifica a vida, porque eles têm amor para dar e amor para receber. No arquivo da Secção de Cirurgia da Academia Nacional de Medicina, está guardada a história de uma mulher de 30 anos, de Manaus, operada pelo Fabio Jatene, que representa esse modelo perfeito da vontade de viver, sempre pela mais nobre das razões: o amor dos seus.
Portadora de um tumor extremamente agressivo e situado ente estruturas vitais do tórax, ela expressou, ao ser informada da indicação cirúrgica, uma confiança absoluta, este sentimento que coloca o cirurgião no seio da família, com tudo o que ele tenha de recursos técnicos, acrescido do peso da responsabilidade, pois todos dependem dele. Quem já viveu esta situação sabe de que peso estou falando.
Antes da primeira cirurgia, ancorada no amor dos pais, o apelo foi que ela precisava muito viver para criar seus filhos pequenos. Nos 18 anos que se seguiram, vitimada pela tendência desse tumor de recidivar em diferentes órgãos, ela foi operada seis vezes, sempre voltando à vida útil entre os seus amados.
Quando internou para a sexta operação, quase duas décadas tinham se passado, os filhos haviam crescido, estavam formados, e um neto agora alegrava a família. Às vésperas da operação, o Fábio foi visitá-la. O trio inseparável lá estava. Mais velhos, mais desgastados pelas idas e vindas do destino e pela doença. Mas a confiança seguia intacta, apesar dos tempos difíceis.
"Mais uma vez, meu querido doutor", disse ela. "Estou cansada! Foram tantas operações e elas estão se tornando cada vez mais difíceis. Estou com medo de numa hora dessas não resistir."
E aí ela disse algo que relembrou o início de tudo, 18 anos atrás, e que mostrou que não há limites para a fé e para a esperança de alguém. E o Fabio Jatene, um gigante de coração mole, encheu o olho para anunciar o último pedido: "Queria apenas um pouco mais de tempo por aqui. Queria muito poder ver meus netos crescerem!".