"Toda pessoa só é normal na média." (Sigmund Freud)
Sempre tive um certo encanto pela psiquiatria. Se não fosse uns ruídos da relação pessoal nos estágios precoces do curso médico, talvez hoje eu estivesse lamentando a perda da alegria de transplantar, posto que o cérebro ainda não se transplanta, mesmo sendo o órgão no qual se reconheça um potencial para uma fila gigantesca de candidatos.
Mas voltemos ao começo da meada: estávamos no quarto ano, o estágio da psiquiatria nos colocou na unidade Melanie Klein, e quando o professor ordenou que fizéssemos a anamnese de um jovem recém admitido, Freud deve ter mudado de posição na tumba, porque era certo que não daria certo.
Cercado por quatro estranhos, o nosso pacientinho não moveu nenhum dos mais de 20 músculos da face. Parecia estar a nossa espera. Mais do que isso: parecia que se preparara para o momento, tal a naturalidade com que encarou um a um dos incautos visitantes. E então nos descobrimos perdidos, ninguém tinha nos ensinado por onde começar a entrevista com um paciente psiquiátrico, e o "bom dia" sem resposta foi o primeiro sinal de que não era assim que nos tornaríamos confidentes.
Então, alguém do quarteto teve uma ideia luminosa: "Que tal começarmos pela identificação do paciente, como fazemos com todos?".
Sem ninguém com uma sugestão melhor, saiu: "Como é o seu nome?".
A cara de espanto foi inesquecível:"Vocês não sabem meu nome, mas tá dando no rádio a toda a hora?!".
O que nasce difícil não melhora com o passar do tempo.
Com a entrevista emperrada, um dos colegas, que o tempo de convívio futuro mostrou ser um grande conciliador, tomou a iniciativa numa trilha que, de tão amistosa, era provável que funcionasse: "Tchê, vou me abrir contigo. Nós somos estudantes, o professor é uma fera, se nós voltarmos lá sem nenhuma palavra tua, o grupo todo vai ganhar zero. A gente quer ser teu amigo, então vamos combinar uma coisa: tu dizes teu nome, onde moras, contas por que vieste para cá, e a gente não te incomoda mais, que tal? Topas?".
A inspeção sequenciada do grupo recomeçou. O olhar gélido dele, batendo no olho aflito de cada um dos parceiros, como se espiasse através dos nossos cérebros e os descobrisse vazios, como acontece quando as pessoas consideradas normais não sabem o que fazer.
E então uma pausa, como se tivesse avaliando se a proposta valia a pena, e uma mudança de posição na cadeira desconfortável só aumentaram nossa ansiedade.
"Topo (funcionou, ufa!). Mas com uma condição: voltem amanhã com um radinho, que eu conto tudo pra vocês! Preciso dum rádio pra descobrir o que estão falando de mim".
O que nasce difícil não melhora com o passar do tempo. Anos depois, já como residente, ouvi do meu chefe, que acompanhava à distância um diálogo meu com um paciente meio estranho, a seguinte lição: "Este papo não vai te levar a lugar nenhum porque estás tentando racionalizar os argumentos de um maluco. Então aprenda o seguinte: em conversa de louco, tu tens que ser o mais louco, porque se não vais ficar numa desvantagem absurda!".
Recapitulando, assumiria que devemos ser menos rigorosos ao rotular, pois, como cantou Caetano, "de perto ninguém é normal".