"O que eu faço é uma gota d'água no meio de um oceano. Mas sem ela, o oceano será menor." (Madre Teresa de Calcutá)
Bastou ter escrito uma coluna sobre a minha perplexidade diante do sofrimento de uma criança doente ou, mais incompreensível ainda, nascida com um defeito congênito que lhe rouba, na origem, a possibilidade de atingir a maturidade, para despertar nos doutrinadores o impulso da palavra esclarecedora. Esta que está nos livros psicografados por autores que captaram, por caminhos desconhecidos, a palavra divina e a divulgam, para que os alfabetizados se esclareçam. Como sempre defendi que as pessoas precisam acreditar em alguma coisa no caminho da completude, sinto um pouco de inveja de quem crê naquilo de que é impossível obter confirmação. Esta que, tantas vezes, é uma área de atrito entre ciência e fé.
Admitindo que ninguém consegue ser completamente agnóstico, defendo-me argumentando que a minha crença se ampara em generosidade, e faço dela a minha fé.
A generosidade como expressão prática da misericórdia, palavra formada pela junção de miserere (ter compaixão) e cordis (coração), é, para os pragmáticos, a expressão mais completa de religiosidade.
No Bereshit, o primeiro livro do Torá (equivalente ao Gênesis, do Antigo Testamento) há, segundo comentários rabínicos, uma história que reporta a dúvida de Deus, se criava ou não o homem e a mulher. Por fim, decidiu, democrata como Ele só, ouvir membros do seu parlamento.
Ao criar o homem e a mulher, Deus se mostrou generoso, mas exigiu a recíproca.
A Justiça foi definitivamente contra, argumentando que nós só traríamos problemas porque somos falsos e mentirosos e que transformaríamos o reino do céu num inferno. Então Deus, equânime como convém a um Deus que quer ser modelo inspirador, decidiu ouvir a Misericórdia, que ponderou que era possível que causássemos alguns transtornos, mas certamente traríamos tantas alegrias, que valeria a pena dar-nos uma chance.
Deus então teria se decidido pela criação, mas estabeleceu uma cláusula pétrea: tomou a Misericórdia em suas mãos, e forte como Ele só, jogou-a ao chão, quebrando-a em mil fragmentos e obrigando os recém criados a catarem esses pedaços espalhados por toda a terra, como forma de construírem a felicidade. Deus se mostrou generoso, mas exigiu reciprocidade, que devia presumivelmente estar presa ao cumprimento desses detalhes, cheios de delicadeza, que definem como somos. Fácil presumir que Deus esteja nesses detalhes, vigiando-nos. A misericórdia, essa capacidade de condoer-se com a dor do outro, desde sempre me encantou e, no contraponto, plantou em mim a ojeriza aos muito religiosos, quando incapazes de qualquer manifestação de empatia e solidariedade.
Certamente por isso, Madre Teresa de Calcutá, por sua vida dedicada integralmente à caridade, é a minha Santa predileta, capaz de inspirar pelos gestos que tantas vezes dispensam as palavras.
O YouTube permite-nos alcançar um trecho do discurso que ela proferiu em Oslo durante a Cerimônia de Outorga do Nobel da Paz, em 1979. É o relato sobre a menininha faminta que, ao receber um pão inteiro, começou a comê-lo grão a grão. Quando Madre Teresa insistiu, "Coma o pão, vamos, coma o pão!", ela respondeu: "Tenho medo de comer o pão, porque tenho medo que, quando ele terminar, eu volte a sentir fome outra vez!". Esta história emocionou a plateia e, 42 anos depois, continua e comovendo-nos, pela pungência dos detalhes. Onde Deus, presumivelmente, está.