Antes da tragédia do morcego malpassado, eu viajava muito. E em cada país diferente me aprazia falar com as pessoas do povo, a começar pelo motorista de táxi, este modelo de cultura oral, que de tanto ouvir as opiniões alheias passa a defendê-las, e com tal convicção, que um desavisado poderia acreditar serem criações dele mesmo.
Como um brasileiro curioso, sempre me interessei em investigar o que mundo pensava de nós, como país. Depois de décadas em que o papo se resumia em reconhecer a habilidade dos nossos jogadores de futebol, de repente mostramos ao mundo para uma originalidade capaz de encher de inveja os nossos históricos detratores: tínhamos em marcha uma operação corajosa a ponto de denunciar os poderosos que, se descobriu, tinham mudado a cor do colarinho, agora encardido pelo suor gorduroso do flagrante, que nada os distinguia dos marginais arrestados pela polícia que cobrem a cabeça tentando poupar a mãe do resíduo de vergonha que alguns ainda sentem.
E havia um orgulho incontido quando confirmávamos que o pasmo do mundo era justificável, porque depois das denúncias, os noticiários da TV, todos os dias, documentavam os delinquentes sendo despertados do sono leve da impunidade, e com olhos esbugalhados e cabelos revoltos, serem conduzidos para uma viatura preta por um tipo de aparência oriental, a sugerir o fim da apatia tropical no combate ao crime, que durante muito tempo fora a atividade líder em organização no Brasil.
Tente explicar ao cidadão comum o que é mais importante e entenderá a indignação dele.
Sabíamos os nomes de todos os juízes e sentíamos orgulho deles. Depois de cada captura, perdurava a sensação gratificante, como se nós, simples mortais, tivéssemos empurrado o ferrolho da cadeia. E íamos dormir com a curiosidade aguçada: "Quem será o próximo?".
Lembro de uma noite em que assisti a um depoimento eufórico de ex-presidente Collor, que tinha sido inocentado por um tribunal, acho que chamavam de superior, em razão das provas terem sido obtidas através de escuta não autorizada.
Aquele discurso ufanista deixou uma sensação de mal-estar, porque não mais se negava as acusações, pois as provas continuavam lá, irretocáveis, mas sim pela evidência de que a estratégia de desmascaramento tinha sido tecnicamente incorreta. Tente explicar ao cidadão comum o que é mais importante e entenderá a indignação dele. Passam-se poucos anos, e a história se repete, como sói acontecer com esse hábito nefasto que ela tem de replay. Mesmo quando a novela não tem nada que aponte merecer o Vale a Pena Ver de Novo.
Depois de centenas de apreensões, dezenas de delações premiadas, muitas prisões de políticos e empreiteiros corruptos, comprovação de desfalques monumentais em empresas públicas, desvio de bilhões para financiamentos espúrios no Exterior e, o mais importante, devolução após resgate de valores astronômicos para o patrimônio da União, eis que num lampejo de clarividência um magistrado, em decisão solitária, contrariando observação prévia do colegiado a que ele pertence, toma para si a tarefa de considerar que todas as denúncias comprovadas à exaustão devem ser ignoradas porque o tribunal que as julgou não era o adequado. Uma descoberta chocante porque significa que, face a uma incrível distração coletiva da nossa suprema corte, ela demorou cinco longos anos para ser percebida!
Espera-se que o brasileiro, que sempre foi um povo pacífico, tome o caminho das urnas para expressar sua indignação. E comecem a se manifestar assim que controlarem a náusea da humilhação aqueles que, ingenuamente, acreditavam que ética e justiça eram sinônimos.
Este país, tão sofrido pela pandemia, não fez nada para merecer a recidiva dessa doença para a qual já nos considerávamos vacinados, e agora nos querem fazer acreditar que caímos no grupo placebo.