Conheci a Cleusa na virada do século. Tinha um derrame pleural recorrente cuja investigação concluiu tratar-se de um mesotelioma difuso, um tumor maligno, com muita frequência incurável.
Numa das primeiras consultas, após os exames revelarem que era um tumor operável, ela interrompeu para pedir: "Sou viúva e procuro poupar meus dois filhos das decisões que, afinal, só eu posso que tomar. Então me conte das expectativas e dos riscos".
A surpresa estava a caminho. Quando pareceria razoável que perguntasse sobre dor, tempo de internação, limitações pós-operatórias, ela foi objetiva: "Em quanto tempo já posso viajar?". Com ela, aprendi que não é possível ser feliz sempre no mesmo lugar.
Essa conversa ela sempre encerrava com um comentário debochado: "Adoro meu país, mas tenho certeza de que ele suporta a minha ausência, uns dois meses por ano!".
Suas queixas eram sempre relacionadas com o envelhecimento das amigas que não conseguiam acompanhar-lhe o passo.
Vinte anos depois, ela mantém a rotina de duas consultas anuais, e com propósitos diferentes. A primeira para um check-up que lhe assegure viajar sem sustos, e a segunda, na volta de mais um tour, para me contar o quanto foi maravilhoso, e de como descobrira um roteiro espetacular para cumprir no próximo ano. Suas queixas eram sempre relacionadas com o envelhecimento das amigas que não conseguiam acompanhar-lhe o passo.
Numa dessas ocasiões, referiu a perda de uma companheira que morrera de um infarto, ao 79 anos. Com um ar pesaroso, comentou: "Era uma amiga tão encantadora, que a gente lhe perdoava todos os atrasos". Eu ri do comentário, ela não. Era coisa séria: "Dói muito perder uma amiga que sabia até o número do meu cartão de crédito!".
E então ela, aos 83 anos, contou do critério que passara a adotar na seleção das novas companheiras que quisessem se incorporar ao grupo que virava o mundo anualmente - elas tinham que ter menos de 70 anos - porque "é muito desagradável substituir as parceiras porque elas simplesmente, morreram!".
A última história que soube dela é maravilhosa:
Voltando para casa numa tarde chuvosa, encontrou um carro dos Bombeiros na calçada e todos os condôminos na rua. A ocorrência de um princípio de incêndio no último andar obrigara a evacuação do prédio. Depois de uns minutos assistindo àquela agitação, ela, de repente, saiu em disparada, quase atropelou o bombeiro que vigiava a portaria, descobriu que o elevador estava bloqueado e subiu pela escada até o seu andar.
Enquanto isso, as vizinhas conjecturavam, na calçada, sobre o que ela correra para resgatar: uma joia preciosa? Uma lembrança do falecido? Quem sabe uns dólares escondido no colchão? Um dos vizinhos comentou: "Coisa pouca não deve ser!".
Dez minutos depois ela voltou, ofegante, mas sorridente, e com ele na mão, como um trunfo. "Lembrei do meu passaporte porque vou viajar na semana que vem, e nesse tempo eu não conseguiria um novo!".
Pelos resmungos, ninguém entendeu. Eu entenderia, mas pra quem não tem o pé no mundo nem adianta explicar!