— Estou aqui porque a junta militar, formada pelos meus três filhos, numa ditadura sem tréguas, determinou que eu viesse consultar consigo. E marcaram a consulta, antes de me comunicarem da decisão, e que era hoje para que não houvesse tempo pra discutir o decreto deles. Ou seja, me tornei um pau mandado.
Assim o Edmundo iniciou a consulta. Não havia mágoa no comentário, feito com alguma ameaça de sorriso. Apenas submissão, este ingrediente que tende a aumentar na medida em que, mais ou menos sutilmente, por conta do envelhecimento, somos considerados cada vez mais dependentes, e nem reclamamos por que, afinal, somos.
Na história da civilização, esta troca natural de comando é relativamente recente, mas se tornará cada vez mais frequente depois que a morte passou a ser prorrogada por tempo inimaginável, se compararmos com os padrões do início do século passado. Assim, o antigo herói imbatível que ocupou o imaginário da prole durante três, quatro décadas, mas que morria antes de conhecer a decrepitude, passou a viver mais, e com isso deparou com as limitações físicas da idade e descobriu que as mudanças bruscas de posição podem provocar tontura, que as articulações têm prazo de validade, e que a bexiga tem uma ousadia insuspeitada e pode inclusive tomar iniciativas constrangedoras, sem consultar a matriz.
E então, chega o momento que Carpinejar definiu com sua habitual genialidade: o filho se torna pai do próprio pai. A partir deste ponto, a relação do filho com o seu velho passa a ser a imagem invertida no espelho do que foi o convívio até então, e se descobre, com clareza cristalina, que o afeto na família é um sentimento regido pela lei implacável da reciprocidade. Tudo porque, não havendo como se encantar com o que está, temos de cultuar a memória do que foi. E esta relação com o retrovisor do nosso afeto, é que estabelecerá os termos do convívio até o fim do futuro.
Os lúcidos até o final ainda têm uma última chance de batalhar pelo resgate do amor omitido ou do perdão negligenciado.
Tão variado é o carinho nas relações com os filhos, e tão surpreendentes as lembranças arquivadas com amor e saudade, ou com ressentimento e mágoa, que não há nada mais imprevisível, para o médico que passou a fazer parte do cotidiano daquela família, do que a reação diante da notícia boa que manda soltar o riso, ou do anúncio de sofrimento e perda, que devia apertar o peito e doer a garganta.
Os lúcidos até o final ainda têm uma última chance de batalhar pelo resgate do amor omitido ou do perdão negligenciado, mas os que perderam contato com a realidade se tornam joguetes do afeto dos filhos. Os que adoram seus velhos, porque foram muito amados, cuidarão com desvelo dos seus queridos porque precisam retribuir o que receberam, e têm a pressa de quem sabe que não há tempo a perder, porque o amanhã perdeu a garantia. Entre esses, está o Carlos Edu Bernardes, que postou uma mensagem comovente: “Meu pai tem Alzheimer, e todo dia me pergunta que dia é hoje. Eu digo sempre que é o Dia dos Pais, e lhe tasco mais um abraço!”.