A nossa reação à tragédia se submete a uma variável poderosa: a distância. A micro fatalidade de um familiar parecerá sempre mais importante e comovedora do que a mega desgraça ocorrida do outro lado do mundo. E isso é compreensível: o que não vai alterar a monotonia da nossa rotina pode merecer uma exclamação, mas nada que não se resolva com um bocejo.
Como a nossa sensibilidade pode estar entorpecida, mas não eliminada, pela geografia, ao nos aproximarmos do local da iniquidade somos assaltados pela emoção das testemunhas que estavam lá de alma escancarada. É assim quando os turistas visitam Auschwitz, na Polônia, e encaram as marcas das unhas dos prisioneiros nas paredes de cimento das câmaras de gás ou excursionam pelo Memorial do 11 de Setembro, em Nova York.
A imagem que arquivei daquele 11/9 se diluía com a lembrança do que eu estava fazendo naquela manhã de terça-feira, e recordo o pessoal da UTI correndo para o quarto do plantonista a tempo de ver que o céu azul na extremidade de Manhattan emoldurava as Torres Gêmeas invadidas por aviões e, por fim, ruindo, como ninguém imaginou que pudesse acontecer. Pois foi com o sentimento pífio da mera curiosidade que recentemente visitei o 9/11 Memorial Museum, erguido ali onde outrora duas torres tinham se tornando a obsessão dos inimigos por representarem, na parca visão deles, o símbolo mais pungente do capitalismo ateu. Entra-se no memorial, baixa-se um aplicativo no celular e, a partir daí, percorre-se durante até três horas o roteiro da tragédia, a começar pelo preâmbulo representado pela explosão de bombas no subsolo do World Trade Center, em 1993. Anos depois, no laptop de um terrorista, encontrou-se seu pedido de desculpas ao seu líder por ter superestimado o dano potencial daquele atentado, mas deixando o alerta de que o WTC seguiria como alvo no futuro.
O planejamento audacioso, a escolha do dia (a terça-feira é quando os aviões estão sempre menos lotados e, portanto, haveria menos gente para ser dominada pelos poucos terroristas), a seleção de aeronaves gigantes para voos de costa a costa (os tanques cheios de combustível teriam uma participação crucial no atentado) e, principalmente, a assustadora disponibilidade de fanáticos suicidas estão brilhantemente relatadas em Plano de Ataque, de Ivan Sant’Anna, um livro imperdível. Mas nada mexe mais com a emoção dos turistas que percorrem o memorial do que as fotos das quase 3 mil pessoas, oriundas de 77 países, com idade entre dois e 85 anos, mortas naquele dia fatídico e os depoimentos de dezenas de testemunhas oculares, cujos relatos estão gravados nas paredes. Alguns desses liquidaram com o meu dia e estão lá disponíveis para liquidar com o seu:
“Estamos nos deslocando muito devagar, não vai dar tempo, nós estamos caminhando para a morte” – uma agente de segurança ajudando pessoas na descida da escada do 77º andar.
“Eu tentava animar meus companheiros, dizendo: aguentem firme que nós vamos resgatá-los. Mas eu sabia que não havia mais nada que eu pudesse fazer por eles” – chefe dos bombeiros.
“Eu fiquei parado, vendo aquela mulher olhando para baixo durante um tempo. E, então, ela saltou. Tentei ver para onde, e só havia uma nuvem escura. Foi quando pensei: esta torre com seus ferros retorcidos e vidros pulverizados agora tem uma alma humana!” – um sobrevivente.
“Era uma mulher jovem, com a jaqueta amarela, que olhou um tempo para baixo, depois tirou a jaqueta e pulou. Não sei porquê ela fez aquilo, mas não consegui olhar para mais nada” – um sobrevivente.
“Eu trabalhava na portaria da Torre Norte. Quando a Torre Sul desmoronou, nós soubemos que a nossa também ia cair porque o rangido era igual. E então começamos a correr tentando escapar da nuvem que baixava. Sou uma mulher grande e forte e puxei pelo casaco xadrez uma menina que só chorava e não saía do lugar. Corri muito puxando aquele casaco, quando a nuvem nos alcançou. Acordei numa ambulância cheia de cortes na cabeça e nas costas. Ainda segurava o casaco xadrez, mas ninguém sabia da menina”.