A nova edição de Casa de Alvenaria, da escritora Carolina Maria de Jesus, publicada pela Companhia das Letras, com uma cuidadosa curadoria do conselho editorial coordenado por Conceição Evaristo e Vera Eunice, filha da Carolina, trouxe à tona a discussão sobre preservação dos desvios gramaticais da autora.
Num primeiro momento, a discussão pode parecer secundária, já que a desobediência gramatical de Carolina não interfere no conteúdo do texto. As temáticas sociais e existenciais, característica de sua obra, não esbarram na variação linguística escolhida pela autora.
Pode-se pensar que manter a grafia “errada” a colocaria num lugar exótico, além de aumentar o preconceito em relação a sua obra. Não creio. Primeiro porque Carolina é uma autora fora da curva da tradição literária. Carolina é inclassificável no certo sentido. Ela não se encaixa no que se espera de uma escritora inserida no cânone. Sua obra nos escapa porque ainda incorremos no erro de abordá-la sob uma visão ocidental, branca e eurocêntrica.
A gramática não é uma lei que obriga seus falantes a escreverem e a falarem por única variante. Em se tratando da linguagem literária, isso é mais evidente. Ora, quem teria coragem de revisar trechos de Guimarães Rosa ao escrever frases como “No ao longe”? Claro que se pode argumentar que Rosa era um profundo conhecedor da gramática e por isso a transgredia.
O argumento é válido, mas não serve para a autora, justamente porque Carolina se apropria da linguagem de um outro modo. Carolina afaga o léxico a sua maneira. Toma-a de uma certa tradição e constrói a própria linguagem. Em sua gramática, estão inscritos os desvalidos, os que não tiveram acesso ao ensino formal, estão inscritos todos aqueles que por meio do racismo foram vedados a uma educação gramatical normativa.
Preservar a grafia e os desvios da norma na obra de Carolina é conferir a ela uma autoria singular. Além disso, podemos refletir sobre as possibilidades do idioma. “Sabotar” a língua portuguesa por meia da arte é um modo de independência intelectual.