Décadas atrás, li uma obra fundamental para entender a alma do Rio Grande do Sul. Voluntários do Martírio, do médico baiano Ângelo Dourado. Ele atuou entre 1893 e 1895 na maior guerra civil gaúcha, a Revolução Federalista. Veio como voluntário pelo lado dos rebeldes, os maragatos. O seu lado perdeu e, anos depois, Dourado transformou seus diários numa pequena odisseia, rica de depoimentos sobre o conflito que matou mais de 10 mil gaúchos.
Voluntários para o martírio existem desde muito antes de Cristo. Apareceram de novo agora, após a invasão da Ucrânia por tropas russas. Em março, poucos dias após o início dos combates que ensanguentam o Leste Europeu, localizei alguns brasileiros que se ofereceram para lutar do lado ucraniano nessa guerra. Inclusive uma gaúcha ajudava no recrutamento. Dias depois, o colega Rodrigo Lopes (que inclusive esteve na Ucrânia para cobrir o conflito) entrevistou um gaúcho que estava lá, André Bahi. Foi o primeiro brasileiro a morrer em combate em solo ucraniano, que se saiba.
Na sexta-feira (1) mais dois brasileiros morreram quando um míssil atingiu o alojamento em que se abrigavam: o gaúcho Douglas Rodrigues Búrigo e a paulista Thalita do Valle.
A Ucrânia propagandeou no início da guerra que mais de 20 mil estrangeiros tinham se oferecido para lutar. Poucos chegaram lá. A Rússia, via Ministério de Defesa, anuncia que 635 combatentes de outros países foram identificados como atuantes no lado ucraniano. Desses, cerca de 20 seriam brasileiros.
O que move essa verdadeira legião estrangeira a atravessar mares até outros continentes, mesmo com a perspectiva muito provável de morrer? Solidariedade, asseguram os parentes do gaúcho Douglas e da paulista Thalita. Os dois disseram a familiares que iriam ajudar vítimas civis do conflito. Ela tinha um gosto por aventura, isso é possível deduzir pelo que relataram seus amigos ao jornalista Herculano Barreto Filho, do site UOL. Em fotos ela aparece manuseando um lança-mísseis portátil sueco, portando um fuzil automático Kalashnikov e vestida em trajes militares no Iraque, onde atuou junto aos curdos que lutavam contra o grupo terrorista Estado Islâmico.
Apesar do treinamento em manuseio de arsenais de diversos calibres, Thalita não fez carreira nas armas. Tinha curso de socorrista, era modelo e atuava numa ONG que cuida de animais. Fez curso de atiradora de elite e pretendia escrever um livro a respeito, relatam familiares. Já Douglas e André foram militares do Exército brasileiro. É provável que o gosto por aventura tenha ajudado na decisão de se alistar agora, além do desejo de se solidarizar com os ucranianos.
Os estrangeiros correm um risco-extra, além dos bombardeios diuturnos e da possibilidade de serem mortos por snipers (atiradores de precisão): podem ser executados como espiões. Um tribunal da região separatista ucraniana de Donetsk (pró-russa) condenou três estrangeiros à pena de morte, dias atrás, por lutarem do lado da Ucrânia nesta guerra. Dois são britânicos e o terceiro, marroquino. A execução ainda não ocorreu.
Em mensagem por aplicativo a um amigo, o gaúcho Douglas Búrigo se mostrou ciente dos riscos e se queixou.
- Bah, louco...tô apavorado. Abateram um colega nosso aqui. Sorte que eu tava bem moqueado. O cara se foi, meu. Vou te falar a verdade, não sei se volto vivo. Mas se eu não voltar, quero que volte a bandeira - manifestou Douglas.
O corpo dele ainda não foi transportado para o Brasil.