Há 30 anos faço coberturas jornalísticas de crime e há 30 anos acontecem, de forma esporádica, ações das Forças Armadas no Rio de Janeiro. São crônicas as operações do Exército em favelas do Rio. Algumas, extremamente pontuais, como represália pelo roubo de fuzis roubados de algum quartel (as tropas permanecem até as armas reaparecerem, em 2008). Noutras, a ação é prevista como forma de reforçar a segurança pública para grandes eventos, como a Rio 92 (encontro ambientalista internacional) e as Olimpíadas. Durante eleições, também, é usual a requisição de tropas federais.
Aliás, desde 2017, as Forças Armadas estavam atuando em missão de "Garantia da Lei e da Ordem", com apoio a operações policiais para combater o tráfico de drogas e os roubos de carga. Faziam o cerco, enquanto policiais ingressavam nos morros atrás de bandidos, armas e drogas. Foi o que aconteceu durante guerra de facções na Rocinha. Amordaçou traficantes, mas os ladrões continuam ativos. Os roubos de cargas no Rio bateram recorde no ano passado: cerca de 11 mil casos.
O caso desencadeado agora, porém, é inédito. O governo federal sugeriu afastamento do secretário estadual da Segurança Pública fluminense, Roberto Sá, fato que já está decidido. E a Polícia Militar e a Polícia Civil estarão sob comando de um general do Exército.
Em declarações oficiais, a intervenção federal é justificada pelo Carnaval violento, que acabou com um arrastão no Túnel Santa Bárbara na noite da Quarta-feira de Cinzas. Isso, apesar de a PM ter destacado 17 mil policiais para atuarem no Rio nesse período de festas.
A motivação real para a intervenção, porém, é muito mais que o caos carnavalesco. É a crônica corrupção policial fluminense. Em apenas duas operações do Ministério Público e corregedoria da PM em 2017 foram presos 126 policiais militares (96 em junho e 30 em novembro). Nos dois casos, após investigações de dois anos, foram comprovadas interações entre PMs e traficantes de Niterói e São Gonçalo. Os policiais cobravam propinas para facilitar a ação do tráfico, além de vender armas apreendidas em operações em outras comunidades. Foi preso mais de 10% de um batalhão.
Já nesses casos a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) colaborou com relatórios sobre a corrupção. Confira diálogo, interceptado, entre um cabo da PM (voz 1) e um traficante de São Gonçalo (voz 2):
Voz 1: Fala, meu mano. Se você quiser atravessar, a gente faz a sua segurança aí, entendeu? Basta você confiar, entendeu? Na gente aqui, porque aí ninguém dá bote em você. Pode acreditar.
Voz 2: Qual é, cara, me empresta o 'paraFAL' (fuzil) aí, cara. Quando for cinco horas eu te devolvo.
Voz 1: Você sabe que a arma da corporação (PM) é complicado, sabe como é que é isso. É um controle danado, entendeu? Passa supervisão vira e mexe, então é meio complicado. Mas esse papo que eu te dei não é papo de história não. Se quiser, você vai na frente, no seu carro, no seu bonde, a gente vai atrás. Se te pararem ou acontecer alguma coisa, a gente tá ali, a gente desenrola.
É na esperança de que esse tipo de negociata acabe que o governo federal decretou a intervenção.
O leitor deve estar se perguntando: e o Rio Grande do Sul?
A verdade é que não há termos de comparação com o Rio. Aqui não há companhias inteiras de PMs presas por corrupção. Aqui não há gravações de policiais alugando armas a traficantes. Aqui não houve caos no Carnaval. Aqui, apesar dos assaltos, não há setores em que as polícias não entrem. Pelo menos ainda.