Publicada a partir da demanda gerada pelo avanço do coronavírus, uma nota técnica da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) trouxe uma mudança na interpretação para ressarcimento no caso de cancelamento de viagens que está gerando divergência por parte da ProconsBrasil - Associação Brasileira dos Procons. Em especial, ao tratar da desistência por parte dos clientes de fazer a viagem. Conforme o texto, o reembolso segue as regras do contrato do consumidor com a empresa. Só que, tradicionalmente, o posicionamento dos Procons é de que, em casos como este, deve ser feito o ressarcimento integral.
A interpretação que dominava é de que são casos fortuitos ou de força maior. O consumidor é considerado a parte mais vulnerável na relação de consumo, além de as empresas assumirem o chamado "risco do negócio". O prejuízo dos cancelamentos é, portanto, "socializado" entre todos. Isso ocorreu em diversas situações, desde a gripe A em 2009 até temporais em que equipamentos eletrônicos são queimados por descarga elétrica ou consumidores ficam sem energia por dias. Nota anterior da entidade de Procons explicitava isso:
"Nos casos em que a viagem já tiver sido adquirida, e NÃO for possível o seu adiamento, deverá solicitar a devolução integral do valor pago, em decorrência do justo e fundado motivo de risco à vida, saúde e segurança própria e dos seus."
— Além da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, as empresas deveriam ver como uma forma de conter o vírus, reduzir o risco de a epidemia tomar proporções maiores — disse à coluna o presidente da ProconsBrasil, Filipe de Araújo Vieira, enfatizando que os Procons não são obrigados a seguir as orientações da Senacon, que é ligada ao Ministério da Justiça.
Na nota, a Secretaria enfatiza que a situação do coronavírus no Brasil ainda não se enquadra em caso fortuito e de força maior, reforçando que não há epidemia ou restrição de viagens. Ainda assim, no caso de a situação se agravar, o texto da Senacon remete ao Código Civil argumentando que há casos em que se extrapola o risco do negócio tirando o dever da empresa de indenizar. Ao citar isso, pondera sobre os efeitos na cadeia econômica:
"a aplicação irrestrita de princípios do CDC (Código de Defesa do Consumidor) não pode ser feita sem considerar os efeitos para toda a cadeia produtiva, inclusive setor de turismo e de aviação", diz trecho da nota técnica.
A Secretaria Nacional do Consumidor insiste que a situação deve ser provada como grave e não como "mera alegação de risco". Continuando que depende do destino e como ele está sendo tratado por entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS).
"E a evocação dessa regra requer prudência e razoabilidade, não podendo ser alegada em qualquer caso, como viagens turísticas no Brasil.", continua o texto da Secretaria.
Embora a nota cite jurisprudência, o advogado especialista em relações de consumo e ex-diretor do Procon Porto Alegre, Cauê Vieira afirma que os tribunais têm decisões divergentes da orientação da Senacon:
— O documento perdeu a oportunidade de deixar a situação mais clara, mais pacífica, para ser aplicada nas relações de consumo.
Na prática, mais casos devem ser judicializados. Ou seja, acabarem virando ações judiciais, apesar de a nota da Senacon dizer que essa seria a última opção. Isso porque a interpretação dos Procons está diferente do Ministério da Justiça. A tendência é de que empresas, sejam companhias aéreas ou agências de viagens, usem a nota como argumento, enquanto consumidores e seus advogados apoiem-se nos Procons que mantêm a interpretação anterior para fundamentar seus pedidos de ressarcimento via Judiciário.
A Comissão de Fiscalização, Controle e Defesa do Consumidor no Senado se reunirá nesta quarta-feira (11) à tarde para debater a política de cancelamento e remarcação de viagens aéreas e de cruzeiros em razão da epidemia de coronavírus. A audiência foi solicitada pelo presidente da comissão, senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL). Segundo ele, consumidores relatam dificuldades para cancelamento e remarcação de viagens.
Colunista Giane Guerra (giane.guerra@rdgaucha.com.br)
Colaborou Daniel Giussani (daniel.giussani@zerohora.com.br)
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