Os dramas do dia a dia acentuam as contradições. O turista e mestre em capoeira que, ao atirar uma flor ao mar, resvalou nas pedras do morro da Guarita, em Torres, e se afogou foi o oposto do motorista que atropelou e matou uma jovem e feriu a mãe, na Avenida Aparício Borges, na Capital, fugindo sem as socorrer.
As duas mortes mostram como a beleza e o absurdo podem convergir no horror. Nada é mais belo e poético do que jogar uma rosa ao mar. Nada é mais abjeto do que ferir a esmo no trânsito e fugir. Os dois opostos levam a igual conclusão: os acidentes são detalhe perigoso na vida e, assim, viver em harmonia com o todo da natureza é o único caminho sadio.
Hoje, as vulgaridades da sociedade de consumo nos distraem e não vemos o essencial. A sedução do supérfluo nos desumaniza, com o risco de virarmos máquinas falantes. Já se diz que, no futuro, a inteligência artificial dos robôs nos guiará até no sabor dos alimentos e na cor preferida.
Sem perceber, pouco a pouco perdemos nossa capacidade e viramos maquinário. Orwell e todos os que profetizaram as ameaças do futuro não ousaram chegar aos absurdos que a tecnologia anuncia como "conforto".
As emoções passam a plano inferior cada vez mais. Se não concordamos com a máquina, o erro é nosso. Se a máquina diz que 2+2 são 5, acrescentamos a unidade para concordar com "a infalível"...
Este exemplo bobo hoje desafia os grandes pensadores mundo afora. A alma humana, com suas emoções e percepções, nada vale?
Até aqui, nenhum progresso tecnológico ou novo sistema político pôde mudar a alma humana. Mesmo polidos, continuamos a ser Caim e matamos o irmão Abel ou repetimos o gesto de Eva acreditando na serpente e enganando Adão...
A consciência e o discernimento nos fazem diferentes da pedra, mas nós e a pedra somos parte da natureza, cada qual com sua função.
Isto nos diferencia da máquina, um conjunto de chips (antes, eram engrenagens) que aponta "tudo na vida", tal qual carro automático troca de velocidade por si. Mas, se temos de ir para trás, tudo é manual e vem do pensamento.
Avançamos ou vamos de ré num gesto de vontade.
O que nos distingue da máquina é a decisão, vinda da vontade.
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Nem as máquinas do ano 3000 terão a visão poética de jogar uma flor ao mar. Só medirão o passo e apontarão o perigo do precipício. A máquina é útil e não me rebelo contra ela. Nenhuma, porém, substitui a alma humana e as emoções.
O ser humano não pode se tornar um autômato guiado por chips. A biologia não é um emaranhado de fios, mas um conjunto de órgãos ou neurônios ligados pelo que chamamos de metabolismo e consciência.
Já pensaram o que seria amar o belo e o bom por decisão da máquina? Ou viver o erotismo pelo computador ou celular?
Por tudo isto, penso no mestre em capoeira, que jogou uma flor ao mar e se afogou na própria poesia.