Em meus tempos de criança, a noite de 24 para 25 de dezembro era de alegre contrição. Festejávamos o nascimento de quem renovou a ideia de solidariedade e amor. Hoje, quando até tolices nos alegram, nem sabemos o que seja "contrição". Há, até, os que confundem com "contribuição" e – usando falsamente o nome do menino – arrecadam milhões inventando "igrejas".
O presépio desapareceu. O Natal do menino Deus foi substituído por Noel, um inventado velhinho barbudo, com roupa e gorro vermelho e que só diz "ho, ho". A tola interjeição substitui a mensagem de amor, mas nem notamos. De uns a outros, desejamos "boas festas" sem saber o que festejamos. Pode ser, até, o Ano-Novo, mas o Natal foi esquecido, suplantado por Noel.
Os presentes perderam o sentido. Nasceram para recordar o presente maior que a humanidade recebeu com o nascimento de quem reimplantou a visão de amor. E tão destemido era que nos legou um novo mandamento – "ama ao próximo como a ti mesmo". Hoje, a disputa domina tudo e espezinhamos o próximo.
Não critico a alegria que envolve o Natal, mas o fato de perder o sentido original e se tornar mera corrida às compras para presentear por hábito ou obrigação social. Os meios de comunicação falam da data como "propulsor da economia" e as estatísticas apontam pobres empregos temporários como salva-vidas no naufrágio da recessão. Não se recorda que os pais fugiam da perseguição de um rei odioso e que, por isso, o menino nasceu numa estrebaria e teve por berço uma manjedoura.
Mas ainda há meios de que o Natal reviva e que Papai Noel não seja um intruso na data que usurpou. Basta readquirir a consciência de que a vida é soma de solidariedade, respeito, compreensão e compaixão. Assim, amor e entendimento suplantarão o ódio que, mais do que nunca, agora tenta se implantar.
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O espírito profundo do Natal ressurgiu na última semana em Porto Alegre no simpósio sobre Saúde Planetária, iniciativa da Sociedade de Médicos de Família e Comunidades, ao alertar sobre as nefastas consequências da crise climática. Com o lema "só temos uma casa" (o planeta), o simpósio reuniu médicos, geólogos e outros pesquisadores com uma antevisão baseada em conclusões da ciência – "os nascidos hoje terão dificuldades de respirar quando adultos".
Dados recolhidos mundo afora mostraram que a crise do clima, provocada pelo carvão e demais combustíveis fósseis, gera diretamente nos humanos não só doenças pulmonares mas também cardiovasculares, além de afetar a concentração, em especial nas crianças. Com dados da ciência, o simpósio mostrou que nosso desdém pela natureza tornou-se assassinato e suicídio ao mesmo tempo.
O simpósio alertou para a devastação que a pretendida mina de carvão entre Eldorado e Charqueadas, a 12 quilômetros da Capital, e o eventual polo carboquímico provocarão no ar da zona metropolitana. Em suma, foi Natal, não Noel.