* Jornalista e escritor
O fato concreto supera a teoria e as pomposas análises sobre a violência urbana que nos estremece pelo país e pelo mundo. Narro agora uma experiência pessoal, ocorrida em Porto Alegre, que me faz pensar na responsabilidade de todos nós.
Na ventosa manhã da quarta-feira, caminhava pela Rua 7 de Setembro, defronte ao Procon, no Centro, rumo a dois bancos, quando (vinda de trás, pelas costas) uma mão alheia se enfia no bolso esquerdo da minha calça com precisão total. Começa, então, uma árdua luta de alguns segundos, em que minha ágil mão direita (fui goleiro na juventude) disputou com a do assaltante a posse de R$ 400. Nessas situações, tudo é rápido e instintivo. Por cima da calça, minha mão direita agarrava a dele, dentro do bolso. Sem nunca ver o rosto nem o corpo do ladrão, tranquei seu tênis com meu sapato. Caímos ao chão, ele por cima de mim e, assim, se desvencilhou e fugiu com o dinheiro.
Ainda deitado, levantei o braço a um homem na esquina, para avisá-lo do ladrão, mas ele nem se mexeu.
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Além dos joelhos ou canelas esfoladas e contusões no tórax, recebi solidariedade. Seis ou sete pessoas me rodearam, eu já de pé, indagando se me sentia bem e se precisava de algo. Descreveram-me ainda o assaltante – um rapazote 'fortachudo', com camisa de futebol, que corria quase bufando. A solidariedade é sempre bela e altruísta e, por isto, conforta como bálsamo.
Por cima e acima da solidariedade, porém, há também o outro lado – o medo que domina a todos e imobiliza toda a sociedade.
Ninguém sequer tentou cortar o passo ao assaltante nem gritar o tradicional "pega ladrão", para colocar a rua de sobreaviso e inibir o assaltante e seus cúmplices.
Um dos transeuntes me felicitou por "nada de pior" ter ocorrido. Quase sugeriu que eu agradecesse ao ladrão por não me ter esfaqueado ou dado um tiro. E o dizia sinceramente, sem ironia, já habituado ao horror.
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O crime se impôs e nos domina pelo medo. Perdemos a noção ética da solidariedade. Habituados a ver os grandes da política se associarem a alguns dos grandes do empresariado para o grande roubo ao dinheiro público, o assaltante de rua nos amedronta, mas já nos conformamos. O único cuidado é que a vítima não seja um de nós.
"Os outros que se danem" – parece ser o lema macabro. A Lava-Jato e outras condenações dos últimos tempos, nos alertaram para o horror da impunidade que vigorou até bem pouco, mas nem isto foi suficiente.
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O ocorrido comigo agora me fez recordar dois rio-grandenses, assaltados em ocasiões diferentes no belo Paseo de la Castellana, em Madri, lá pelo ano 2000. Um ladrão arrancou a bolsa a tiracolo (usual na época) e correu, enquanto o historiador Décio Freitas gritava: "Ladrón, ladrón". Com o grito, um transeunte estendeu a perna, o ladrão tropeçou e Décio foi sobre ele.
Meses depois, o casal Leonel Brizola sofreu algo semelhante. Ao arrancarem a bolsa de dona Neusa, com a correria e os gritos de Brizola, um pedestre se interpôs ao assaltante, que nosso ex-governador derrubou na calçada a murros e empurrões.
Aqui, há décadas acostumados à impunidade dos grandes, a visão de não punir (ou de que não adianta punir) extinguiu a noção profunda de solidariedade.
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É impossível conviver com o crime ou tomá-lo como normalidade, deixando que cresça no meio de nós, pois vai se expandir como parte de nós. E seremos criminosos também, por permitir o delito ou por nada fazer contra ele.
É impossível pretender que haja um brigadiano ao lado de cada cidadão. Seria transformar o Estado em "Estado policial".
Temos de entender que o Estado somos nós, mas não como meros sujeitos passivos. Nós somos o Estado como partícipes das decisões e, se necessário, como participantes das ações.
E se o governo, com as igrejas, universidades, entidades patronais e de trabalhadores, ONGs e meios de comunicação, juntos e sem mesquinhez, tentarem organizar a sociedade – bairro a bairro, grupo a grupo – para dar uma rasteira ao crime através da solidariedade e mútua colaboração?
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