Eu era um jovem estudante de Jornalismo quando decidi, em 2002, criar uma revista de assuntos judaicos com dois amigos, vinculada a uma sinagoga de Porto Alegre. Publicações institucionais da comunidade havia algumas, mas uma que falasse exclusivamente de ideias, com profundidade, nos pareceu algo bastante inovador. Revistas culturais, infelizmente, costumam ter vida limitada, mas aquela bateu o recorde: teve apenas uma edição. Mas que edição.
Além de escrever nossos artigos, resolvemos arriscar e convidar algumas personalidades para colaborar. Mesmo que a revista ainda não existisse e que fôssemos completos desconhecidos, tivemos notáveis contribuições. O psicanalista Abrão Slavutzky ofereceu um belo ensaio sobre a Ética dos Pais, importante livro da tradição judaica. Acabou sendo o destaque da capa da revista.
Não podíamos deixar de falar com Moacyr Scliar, que também respondeu solicitamente, enviando um texto sobre Walter Benjamin que havia preparado para algum evento. Pouco depois, Scliar informou que tinha mudado de ideia sobre a colaboração: resolveu escrever uma divertida crônica especialmente para a revista, com memórias daquela sinagoga – no caso, das brigas que ocorreram no passado por lá.
Lembrei desse episódio agora que se comemoram os 40 anos de lançamento daquele que é provavelmente seu livro mais célebre, O Centauro no Jardim (1980). Ex-aluno de colégio judaico, tive contato com sua ficção desde cedo, mas o primeiro texto que me impressionou foi um ensaio: a alentada introdução que escreveu para uma edição brasileira de O Estado Judeu (1896), de Theodor Herzl, livro de referência do sionismo. Ali, naquele texto de apoio, Scliar repassou toda a saga do povo judeu com erudição e concisão.
Escritor versátil, dominou o romance, o conto, o ensaio e a crônica. Mas foi em O Centauro no Jardim que encontrou a metáfora exemplar da dupla identidade judaica e gaúcha: uma figura metade homem, metade cavalo. Universal, o livro serve de espelho para todas as outras identidades híbridas de que tanto se fala hoje em dia. Quem se sente estranho, deslocado, fora da norma encontra seu lugar neste romance. E assim Scliar criou um mundo para habitarmos.