Hedda Gabler, peça fundamental de Henrik Ibsen de 1890, começa quando Hedda e Jørgen Tesman retornam de uma lua de mel de quase seis meses para morar em sua mansão recém-adquirida. Fora isso, não há motivo para invejá-los: embora Tesman se orgulhe de ter se casado com o melhor partido do pedaço, Hedda está completamente entediada com sua vida – a começar pelo fato de que o marido, aspirante a professor de História, passou boa parte da viagem de núpcias estudando.
Tornou-se comum chamar Hedda Gabler de “Hamlet feminino”, não tanto pelas semelhanças entre os personagens de Ibsen e Shakespeare mas pelo fato de serem ambos extremamente complexos. Uma das perguntas mais intrigantes do teatro moderno é: quem é Hedda Gabler? A tradução direta do norueguês assinada por Leonardo Pinto Silva, lançada recentemente no Brasil dentro da Caixa Ibsen (Carambaia), oferece uma oportunidade de ensaiar algumas respostas.
À primeira vista, Hedda é uma mulher enigmática que se diverte manipulando as pessoas por mero jogo de poder. Mas um exame aprofundado revela uma personalidade extremamente inteligente, irônica e angustiada que não encontra seu lugar em um mundo patriarcal. Toda a peça se passa dentro da casa dos Tesman, que ao final parece mais uma prisão da qual a protagonista busca desesperadamente fugir. Seu desfecho é diferente daquele de Nora, de Casa de Bonecas, outra grande peça de Ibsen, que abandona o marido e os filhos. Hedda é mais trágica: suicida-se com um tiro na cabeça.
Qualquer tentativa de rotular Ibsen como feminista ou machista esbarra em reducionismo. O dramaturgo norueguês é genial o suficiente para construir situações que permitem múltiplas leituras. Cabe a cada encenador e a cada atriz encontrar sua própria Hedda Gabler. Quem quiser ter acesso a uma peça “como ela é” deve simplesmente ler o texto – uma encenação é sempre uma releitura. Em um texto para o jornal The Guardian sobre a montagem inglesa que atualmente excursiona pela Europa, a crítica teatral Lyn Gardner entende Hedda como vítima de depressão: “É um claro lembrete de que, apesar da distância entre o século 19 de Ibsen e o nosso tempo, ainda vivemos em um mundo de homens”.
Quem chegou apenas agora pode pensar que esse tipo de leitura mais positiva é uma novidade, mas uma pesquisa superficial já nos mostra que os críticos estão atentos à força criadora de Hedda há algum tempo. Em 1983, Sábato Magaldi escreveu sobre uma versão do diretor Gilles Gwizdeck com Dina Sfat no papel-título: “A personalidade da jovem que retorna da lua de mel, aos 29 anos, é por demais complexa, envolvendo falta de perspectivas, frustrações, ideais romantizados, fraquezas e existência sufocante que ainda condicionam a mulher a determinadas funções sociais e a deixa indefesa, se ela não deseja cumpri-las”.
Assista ao trailer da montagem inglesa de Hedda Gabler do National Theatre: