Nilton, um dos nossos professores de História no colégio, era uma figura. Entrava em sala de aula batucando com uma caneta e cantarolando alguma coisa de Chico Buarque ou Deep Purple, se bem me lembro do repertório. Era dos raros professores que conquistaram respeito, admiração e simpatia dos alunos. Isso não era tarefa fácil. Estávamos no final dos anos 1990, a poucos passos do vestibular, e não nos importávamos muito com História, como diz aquela música dos Ramones. Com Nilton, aprendemos a gostar.
Lembrei dele depois de assistir aos pronunciamentos da votação do impeachment na Câmara dos Deputados. O que explica a popularidade de um deputado que aproveitou para homenagear um torturador e louvar a ditadura militar? Como esse deputado lidera a corrida presidencial entre a camada mais rica da população, como mostrou o Datafolha? Afinal, por que insistimos em não aprender com a história, mesmo que tenhamos tido excelentes professores? O que Nilton, nosso saudoso mestre, diria de tudo isso?
Resolvi perguntar a ele. Nilton Mullet Pereira hoje é professor da área de ensino de História da Faculdade de Educação da UFRGS. Quase 20 anos depois de nossa última aula, contatei-o por e-mail. Garantiu que se lembra muito bem da nossa turma e que está "firme ainda, só com algumas rugas aparecendo". Disse ele: "Cada vez que alguém nega a tortura ou a ditadura, o faz em desrespeito à democracia, à lei e à justiça. Creio que a elite brasileira se mantém conservadora e admite recorrer a qualquer candidato que se posicione no outro lado de conquistas sociais e divisão de renda, deixando de lado também a ideia de uma política como arte do diálogo e do espaço público como lugar de estratégias de respeito à diferença, razão muito clara do triste golpe que tem se organizado e que culminou no dia 17 de abril".
E concluiu: "Será preciso uma boa aula de História para permitir às novas gerações compreender tudo pelo que estamos passando. Nesta aula, certamente deverá haver muito conhecimento histórico, produzido com seriedade e rigor conceitual, e muita política para repensar a nossa memória e as representações que esse discurso conservador, violento e preconceituoso tem criado sobre nós mesmos, sobre os brasileiros".
Leia a entrevista completa com o professor de História da UFRGS Nilton Mullet Pereira:
Em seu pronunciamento na Câmara no domingo (17/4), Jair Bolsonaro homenageou o torturador Brilhante Ustra e celebrou o golpe de 1964. Hoje, segundo o Datafolha, ele é o preferido das classes mais altas para a eleição presidencial de 2018. Como você analisa esse cenário?
Tal manifestação é parte de um movimento de intolerância que avança de modo bastante agressivo no cenário brasileiro. A referência a Brilhante Ustra deve ser vista por duas vias. Uma é a coragem que determinadas pessoas têm de defender posições notadamente conservadoras e discriminatórias, o que inclui homofobia e outras tantas formas de manifestação de preconceitos e discriminação. Parece haver um espaço aberto para pregar a injustiça e a intolerância, e isso é entristecedor.
A outra via é um claro desrespeito à ordem democrática e aos ideais de justiça que nossa sociedade construiu a duras penas desde o final da II Guerra Mundial e que, particularmente, o Brasil tem tentado fazer desde o final da ditadura civil-militar. O fato é que homenagear Brilhante Ustra é um claro desrespeito à lei e aos direitos humanos, assim como sugerir que não houve ditadura ou que não houve tortura. Cada vez que alguém nega a tortura ou a ditadura, o faz em desrespeito à democracia, à lei e à justiça.
Creio que a elite brasileira se mantém conservadora e admite recorrer a qualquer candidato que se posicione no outro lado de conquistas sociais e da divisão de renda, deixando de lado também a ideia de uma política como arte do diálogo e do espaço público como lugar de estratégias de respeito à diferença, razão muito clara do triste golpe que tem se organizado e que culminou no dia 17 de abril.
Muito se fala que os brasileiros têm memória curta. Nesse contexto, quais são os desafios dos professores de História?
Os desafios dos professores de História são muitos e difíceis. Eles trabalham com representações e com memória. Desse modo, estão sempre em torno da tarefa de compreender as representações que circulam na nossa sociedade e com a redefinição dos parâmetros da nossa memória. Ou seja, os professores de História trabalham sempre com as relações sociais e com o modo como criamos representações sobre essas relações sociais, no passado e no presente, com vistas a desconstruir e a reconstruir a memória social.
Assim, ser professor de História implica uma tarefa altamente política, uma vez que significa a recriação do passado e a crítica ao presente, no interior de uma sala de aula para os jovens. Escrever a História não é uma tarefa neutra ou imparcial; dar aulas de história também não. É desse modo que ensinar história não apenas é dizer algo sobre o passado e criar um modo de olhar para isso, como também é inserir as novas gerações nas discussões, nos debates do tempo presente.
Os limites para uma aula de História, então, são a justiça e os direitos humanos. Um professor de História pode muito bem problematizar se Getúlio Vargas era populista ou não, mas não pode colocar em xeque se o Holocausto existiu ou não, se houve ou não escravidão ou se houve ou não ditadura no Brasil, pois o limite do recorte que faz do passado é o combate à memória que torna pessoas intolerantes ou que justifica práticas discriminatórias. Logo, a aula de História está ao lado de um modelo de sociedade que se pauta pela democracia, pelos direitos humanos, pela justiça social, pela inclusão de todos numa sociedade de bem estar.
Ao ter estes valores políticos presentes, o professor de História não faz mais do que corporificar os princípios da nossa Constituição. Quando se busca mutilar o passado em nome de interesses de grupos, sem pensar no bem comum ou no modus vivendi, se faz uma má aula de História, com certeza.
Como você analisa a situação política no Brasil hoje: a questão do impeachment, os deputados investigados que falam em nome da ética, a falta de identificação dos brasileiros com os políticos e o fato de seguirem elegendo estes representantes?
Creio que vivemos tempos difíceis. A discussão política, o debate de opiniões e de projetos para o Brasil parecem ceder lugar para um fazer político profundamente fisiológico, torpe e golpista, uma vez que a disputa sadia que respeita e lei e o Estado democrático e as instituições não servem quando se trata de combater um governo que, desde todos os seus problemas, alianças e dificuldades, tirou milhares da pobreza e dividiu a renda.
O que está em jogo é o combate a esse projeto. Sob um discurso de combate à corrupção, ainda que a corrupção faça parte da história deste país faz muito tempo, o alvo é destruir as conquistas sociais inéditas na história brasileira, como o acesso à universidade por meio das cotas sociais e étnicas e mesmo a ampliação da educação superior, apenas para citar dois elementos.
É realmente triste ver que boa parte dos deputados que votaram pelo impedimento de uma presidente sem qualquer processo ou condenação por corrupção seja justamente dos mais envolvidos e investigados em casos de corrupção. A política está sendo rebaixada, neste caso, pela violência do preconceito contra os pobres, pela intolerância e pela discriminação.
Será preciso uma boa aula de História para permitir às novas gerações compreender tudo pelo que estamos passando. Nesta aula, certamente deverá haver muito conhecimento histórico, produzido com seriedade e rigor conceitual, e muita política para repensar a nossa memória e as representações que esse discurso conservador, violento e preconceituoso tem criado sobre nós mesmos, sobre os brasileiros.