Não lembro exatamente quantos Natais foram, mas de uma coisa tenho certeza: Dona Irene sonhava com uma geladeira nova, ou pelo menos uma melhorzinha do que aquela que tínhamos lá em casa e que já acusava o peso da idade. Minha mãe sempre foi sonhadora, e quem a puxava para o rés do chão era minha avó, Dona Rosa, que a ajudou a pastorear e manter na linha a filharada que ficara órfã de pai no início dos anos 1970.
– Geladeira... Pra botar o quê?
Dona Rosa sabia bem para quê, mas era seu jeito de fustigar a filha e quem mais estivesse por perto para ouvir suas imprecações contra a dureza daquela vida de voltar do açougue com meio quilo de guisado.
Eu não entendia muito bem o que se passava, e como todos os inconscientes vivia sossegado em minha alienação. Só queria saber de ganhar um revólver de espoleta para brincar de soldado e ladrão, mas, como cantou João Nogueira no clássico Espelho, “foi mais uma vontade que ficou para trás” no ir-e-vir de Natais em que Papai Noel voava a jato pelo céu, inalcançável.
O sonho de Dona Irene era o de milhões de donas de casa, e se existe uma coisa que o brasileiro foi à luta para conquistar desde aqueles antigos Natais é a sua “Frigidaire”, sua “Steigleder” e todas as marcas que viriam depois, oferecendo mais comodidade e menor consumo de energia dentro, é claro, das nossas possibilidades de aquisição, que ainda estamos longe de viver como suecos.
Fabricantes se esmeraram para fazer geladeiras adequadas a todos os bolsos. As famílias foram à luta. Governos não atrapalharam – ao contrário. E o que se vê é que, hoje, quase 100% dos brasileiros têm uma geladeira em casa – boa parte, é claro, já pedindo aposentadoria, como a de minha mãe lá nos tempos do sobrado da Rua Riachuelo, em Cachoeira do Sul. Para tais brasileiros, este Natal de 2023 trouxe um embrulho no estômago. O atual governo brasileiro quer enquadrar a indústria de refrigeradores em padrões de eficiência energética que, segundo a associação de indústrias do setor, deve elevar o custo de uma geladeira básica de menos de R$ 2 mil para cerca de 5 mil.
Dona Rosa certamente perguntaria:
– Pra quê isso?
Há muitas respostas, nenhuma convincente. O salto no preço das geladeiras seria compensado, diz o governo, com a redução da conta de luz. Um argumento fraco diante de pessoas que não podem ou não querem fazer um investimento que só se pagará ao longo de anos. Mas o objetivo central desta e de outras medidas que estão no forno do governo federal, e que não têm encontrado no parlamento ou na imprensa maior questionamento, é reduzir de forma drástica e leviana a emissão de carbono no país para se apresentar ao mundo rico como exemplo no combate ao aquecimento global. Uma afetação. O Brasil é responsável por menos de 5% das emissões de dióxido de carbono – muito atrás das emissões de Estados Unidos e Europa, no mundo rico, e de países que vêm acelerando seu desenvolvimento industrial, casos da China e da Índia.
O Brasil se atrasa para seu governo posar de vanguardista ambiental, enquanto finge não ver grande parte da população exposta ao esgoto que corre a céu aberto.
É uma fria, diria Dona Rosa.