Se o Congresso Nacional fosse conduzido por homens e mulheres com altivez, o país terminaria este ano de 2023 revolvendo-se em cólicas institucionais, com o todo-poderoso decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, sendo chamado às falas para se explicar. Irritado com a aprovação, pelo Senado, de uma proposta de emenda constitucional (PEC), chamou seus autores de “pigmeus morais”. O primeiro alvo da cusparada de Gilmar é ninguém menos que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que liderou os esforços para votar e aprovar o texto remetido agora à Câmara dos Deputados. A PEC não tem nada de mais. Se aprovada pela Câmara, impedirá que uma lei aprovada pelos congressistas seja barrada pela vontade de um único ministro do STF – a chamada “decisão monocrática”. O STF não perde poder, pois o colegiado de 11 ministros seguirá mandando e desmandando, como tem feito. Mas Gilmar quer manter o poder unipessoal de cada um dos 11 “supremos”. É um trunfo que ele tem usado, diretamente ou por meio dos ministros que ele lidera, para fortalecer sua influência nos centros do poder político e econômico.
Gilmar Mendes teve, ou simulou, um surto de fúria contra a decisão do Senado. Disse que seu tribunal não era composto de “covardes” nem de “medrosos”, mais uma crítica que, obliquamente, enxovalhou Pacheco, a evidenciar que o presidente do Senado – o único homem na República que pode abrir um processo de impeachment contra ele – não lhe mete medo nem, tampouco, detém sua virulência verbal. Ato contínuo, Gilmar foi se reunir com o presidente da República e o enquadrou também. O voto do líder do governo em favor da PEC contra decisões monocráticas foi encarado por ministros do STF como uma “traição” do governo à Corte. Para entender o que isso significa, só mesmo recorrendo ao próprio Gilmar, que em recente manifestação no Exterior garantiu que se Lula está sentado na cadeira de presidente é graças ao tribunal. Lula se ajoelhou, indicou Flávio Dino ao STF e Paulo Gonet, ex-sócio de Gilmar, à chefia do Ministério Público Federal. E Gilmar saiu vitorioso da contenda que ele mesmo insuflou.
E assim chega ao fim o ano de 2023, com um presidente da República que é refém dos favores que recebeu da mais alta Corte, o que inclui sua descondenação após 580 dias de prisão. Ser complexo que é, Lula não se incomoda com a condição de refém. Como um velho caudilho, o último de nosso tempo, ele não só aceita a condição de que governa por concessão de um tribunal como vai se tornando, sutilmente, um sócio. A tal ponto que, hoje, o Brasil não tem um governo, mas um regime diverso da democracia. É o regime Lula-STF, ou melhor, STF-Lula.
O STF tem o poder de polícia – inclusive de pensamento – e tem a caneta para cassar votos e deletar ou reabilitar eleitos de hoje e de amanhã. Lula tem a gestão das verbas e de milhares de cargos não só federais, mas na alta administração de empresas privadas nas quais um banco federal, o BNDES, tem participação acionária. Eis um pouco desta sinistra divisão de papéis no regime STF-Lula.
Quem pode trazer a democracia de volta? Só Congresso Nacional, o único representante legítimo do povo brasileiro em toda sua diversidade. Mas convenhamos que a passividade diante da pecha de “pigmeus morais” equivale a passar recibo ao ultraje de Gilmar Mendes. Até quando o parlamento aceitará ficar de cócoras?