Cheira mal, muito mal, o recente decreto editado pelo presidente da República estabelecendo mudanças no chamado “marco legal do saneamento”. Na prática, o que vemos é uma tentativa de frear um dos maiores e mais promissores avanços que o governo anterior e o parlamento brasileiro colocaram em marcha – uma legislação destinada a estimular o ingresso do investimento privado em serviços de saneamento básico no Brasil. Com sua visão governocêntrica, o novo chefe do poder executivo tenta proporcionar a estatais ineficientes a chance de ganhar tempo e permanecer dando as cartas no setor. É claro que, sob o ponto de vista da barganha política, o presidente faz um cálculo esperto. Barrar privatizações traz apoios no movimento sindical e em setores partidários que se penduram no clientelismo. Mas tal esperteza apresenta uma conta altíssima ao país, e que será paga exatamente pelos brasileiros mais humildes e vulneráveis.
O país que em 2022 completou 200 anos de independência tem no saneamento básico o grande emblema do seu atraso, e também da insensibilidade de suas classes dirigentes. Considere que o Brasil é um país de 214 milhões de habitantes e dispõe da maior oferta de água no mundo – um bem dramaticamente escasso em outros países, a ponto de suscitar preocupações geopolíticas que remetem a sérias ameaças à manutenção da paz entre as nações. Como aceitar que, décadas, séculos, tenham se passado e continuemos acorrentados a uma fotografia em que mais de 100 milhões de brasileiros não têm acesso a uma rede de esgoto? Outros 35 milhões vivem – vivem? – sem ter água tratada para si, para a família e, principalmente, para suas crianças e seus idosos. Você sabe o que é passar um dia sem água limpa? Tente imaginar uma vida sem. Doença e morte espreitando os pequenos e se espalhando como o ar pestilencial.
Como chegamos a este estado de coisas? Um dos clichês do manual do político cínico diz que enterrar canos é obra que não aparece e, portanto, não rende votos. Frente às câmeras, incontáveis explicações e subterfúgios são dados pelos governantes, tudo servido ao molho adocicado das promessas vãs. De concreto, o que temos é um setor público – federal, estadual, eventualmente municipal – com orçamento minguado, incapaz de investir em infraestrutura.
Agentes privados podem e querem fazê-lo, e ganharam as boas-vindas do governo e dos congressistas eleitos em 2018 com o marco legal do saneamento. Mas as forças do retrocesso – que inexplicavelmente se vendem perante a imprensa como “progressistas” – estão aí para esmagar, no nascedouro, uma tentativa óbvia de romper com a estagnação secular dos serviços de água e esgoto. São os mesmos que lutaram para que permanecêssemos atados ao monopólio estatal das telecomunicações – olhe para seu celular e imagine como estaríamos se tivéssemos ficado cativos, até hoje, nas mãos de uma “Telebrás”.
Pois no saneamento nós ficamos reféns da incúria de um Estado balofo e irresponsável. E, pelo que sinaliza o decreto presidencial de abril de 2023, assim teremos de permanecer.