São águas passadas, por certo, mas ainda movem meus moinhos.
Na última semana, neste mesmo e nobre espaço, mergulhei no curso de alguns dos riachos, arroios e córregos de Porto Alegre que foram canalizados, soterrados, humilhados e ofendidos – e hoje sobrevivem ocultos na degradação e no opróbrio. A profecia – ou melhor, a evidência científica – de que, cedo ou tarde, eles ressurgirão das catacumbas levando de roldão propriedades e proprietários vazou feito ameaça, jorrou como ofensa, perante olhos mais (ou menos?) sensíveis. Houve até quem tenha vertido lágrimas preventivas pelas tragédias materiais e perdas pessoais que hão de ocorrer.
Devo confessar, porém, que venho chorando há mais tempo. Em 1978, tomei conhecimento da antiga lenda de Obirici. A fábula, contada por um velho índio guarani de nome Vicente, sobrevivente da Guerra Missioneira e radicado em Porto Alegre em 1801, foi coletada e imortalizada pelo escritor, folclorista, boticário, abolicionista e deputado Caldre Fião (1821-1876). De acordo com a história, derrotada num torneio de arco e flecha cuja vencedora se casaria com o filho do mais poderoso cacique da região onde hoje é Porto Alegre, a "princesa" Obirici ficou arrasada.
Com o coração partido, partiu rumo ao vasto areal que se estendia lá para as bandas do Gravataí e, sentada ao pé de uma figueira, pôs-se a chorar, clamando que Tupã a levasse deste mundo já ao calor do sol ou sob a carícia do luar da primeira noite. Ao amanhecer, o corpo de Obirici se convertera num rio de lágrimas: o Ibicuiretã, ou "arroio que corre sobre a areia". Até fins do século 18, mulheres indígenas ainda iam chorar ali a perda de seus amores.
Sim, era só uma lenda. Mas o Ibicuiretã existia – e ainda existe, claro. Assim, lá fui eu para os lados do Passo d'Areia em busca do lugar onde Obirici enterrara seu coração na curva do rio. Nas coxilhas onduladas perto do Country Club, sinuoso por entre as figueiras, avistei o arroio. Foi fácil: bastou seguir o cheiro de podre, o rastro do lixo, as trilhas cegas entre as macegas, sob nuvens desfiguradas numa paisagem de imperfeições. Nunca tive paciência para Paulo Coelho, mas, naquele dia, à margem do rio de areia, eu sentei e chorei. As lágrimas de dor cedo viraram pranto de raiva e impotência, pois, meses depois, máquinas enormes se puseram a terraplanar as colinas e arrancar as figueiras – uma sobreviveu e segue torta em meio a um estacionamento de asfalto. A seguir, o rio de lágrimas foi canalizado e soterrado.
O lugar não ressoa mais o nome de Obirici. Atende agora por Iguatemi.