Faz um bom tempo, lá pelo final dos anos 1970, dei de cara, no sótão da casa de um amigo, com um mapa de Porto Alegre. Era aquela tradicional planta da cidade, editada pela Livraria do Globo, tão comum nas paredes de imobiliárias e repartições da Capital, séculos antes do Google Maps delegá-las à lata de lixo da História. Mas o caso é que aquele mapa era de 1937. E o que mais me chamou a atenção – além dos bosques e capões de mata expandindo-se muito além da Zona Sul, entremeados por entre as colinas e baixadas do Mont'Serrat, da Bela Vista e bem... do bairro Floresta – foi a quantidade de veias azuis que se alastravam pelo mapa: eram córregos, riachos e arroios, uma espécie de sistema circulatório da cidade.
Um desses cursos d'água era meu velho conhecido. Nascia nos altos da Rua Pedro Ivo, ia serpenteando pela atual Silva Jardim, cruzava a 24 de Outubro na altura do número 1.600 e descia Bordini abaixo até formar um pequeno lago na confluência da Quintino com a Benjamin Constant. Ali, os carroceiros levavam seus cavalos para matar a sede. Cheguei a conhecer o laguinho. O dito riacho passava debaixo do estúdio de fotografia que meu irmão manteve por anos na Bordini e sob a garagem do prédio no qual digito agora estas mal traçadas linhas. Usei os verbos no passado, mas o fato é que o tal córrego está onde sempre esteve – embora desde os anos 1950, canalizado, soterrado, podre e fedorento. E depois da construção do tal "conduto Álvaro Chaves" apareça ainda menos – e já não "incomode" tanto seus vizinhos.
Como quase todas as cidades do Brasil – e do mundo –, Porto Alegre está onde está só por causa das águas que a cercam. No caso da capital dos gaúchos, não apenas o Lago Guaíba: os limites da sesmaria de Jerônimo de Ornelas eram o Rio dos Gravatás (Gravataí) ao Norte, o Rio dos Jacarés (Jacareí, hoje Arroio Dilúvio) ao Sul, Arroio Feijó a Leste e as próprias margens do Guaíba a Oeste. Já o Rio das Capivaras (Capivari) e os arroios da Cavalhada e do Salso delimitavam as duas outras sesmarias estabelecidas por volta de 1740 dentro dos atuais limites urbanos de Porto Alegre.
Não é preciso ser geógrafo nem hidrólogo para saber que todos esses cursos d'água estão hoje como meu velho riozinho: podres e fedorentos – e, se já não se encontram assim, em vias de serem canalizados, soterrados e escondidos. Mas tal e qual ocorreu anteontem em Belo Horizonte, um dia eles voltarão para reivindicar o espaço que era – e continua sendo – deles. E devo confessar que, apesar de toda a tragédia que isso em geral pressupõe, eu torço para os rios.