E então, num piscar de olhos, o Palácio de Inverno, em São Petersburgo, caiu para dar início à primavera do mundo. Era como se estivéssemos todos lá: Maiakovski, vestido de três metros de meio-dia, soprando a flauta feita das próprias vértebras; Eisenstein com uma câmera na mão e mil ideias na cabeça; Rodchenko colando colagens construtivistas pelos aposentos do czar; Prokofiev ouvindo coisas, a tanger o violino; Chagall pronto para tingir velhas chagas de cores novas, vendo Kandinsky jogar amarelinha. Tudo que é sólido desmanchando-se no ar, feito a fumaça do trem que trouxe Vladimir Ilitch.
Sim, é tudo verdade: Lênin acaba de desembarcar na Estação Finlândia, aqui em São Petersburgo, enquanto o camarada Trotsky inflama a massa proletária com seu discurso incendiário, bem ali, no comitê dos sovietes. Tudo o que veio antes é jogado agora na lata de lixo da História. O mundo está prestes a mudar – e mudaremos com ele.
Anastácia chora em vão.
John Reed, o jornalista vermelho, testemunha ocular dessa história, furou a revolução e entrou no lar do czar pisoteando as espingardas deixadas para trás pelos guardas em fuga. Seu livro épico ainda anda por aí, em várias edições: é a História em carne viva. Mas, por mais que aquela leitura tenha mudado tantos corações e mentes ao redor do mundo, foi preciso aguardar um século para ter "distanciamento" suficiente e entender melhor o que afinal se passou naqueles 10 dias que abalaram o mundo.
A Rússia dos czares atrozes e dos revolucionários rebeldes, dos escritores febris e das censuras ferozes, de tantas calúnias e tantas calamidades ainda desfila seu poderio e suas misérias embaralhando o quadro que, há um século, parecia pintar o nascimento de uma nova nação. Muitos foram os gênios que a vislumbraram enquanto ela se contorcia nas dores do parto. E houve quem tivesse visto ali o advento do paraíso na Terra. Talvez por isso tenha sido tão dolorido. Talvez por isso não pudesse mesmo dar certo. Afinal, era só uma história humana – demasiadamente humana.
Pois o fato é que o legado real do experimento político que se iniciou há 101 anos em São Petersburgo, chegou a Moscou e em seguida projetou a aura de seus sonhos e a sombra de seus pesadelos por todo o planeta foi, em larga escala, de destruição e morte. Basta relembrar que Maiakovski suicidou-se, Eisenstein foi flertar com Hollywood, Rodchenko abstraiu-se e se absteve, Prokofiev preferiu escutar a rapsódia americana e Chagall quis ficar numa nice, em Nice. Para milhões de outros, restou o Gulag e uns poucos conseguiram publicar suas recordações da casa dos mortos: são só esqueletos enregelados em covas anônimas.
Assim, no fim das contas, talvez estivéssemos errados. Mas isso não quer dizer que nossos antagonistas estavam certos.
Até porque eles seguem aqui, e acolá, fazendo a História se repetir como tragédia e como farsa.
E Anastácia ainda chora em vão.